Coloquio 18 (Garcia da Orta)

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Coloquio 17
Garcia da Orta, Coloquios dos simples, 1563
Coloquio 19


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COLOQUIO DECIMO OCTAVO
Da crisocola e croco indiano, que he açafrão da India, e das curcas


INTERLOCUTORES
RUANO, ORTA, SERVA


  • açafram da terra : Nom accepté : Curcuma longa ; Coptis Teeta : Coptis teeta ; Thalictrum foliosum : Thalictrum foliolosum, deux plantes à racines jaunes.
  • Colocasia indica est un synonyme de Alocasia macrorrhizos. Nom accepté : Colocasia esculenta, qui comprend un Groupe Dasheen à tubercule central comestible, et un Groupe Eddo à nombreux petits tubercules latéraux et pédicellés, qui est celui dont parle l'auteur. Curcas est une variante de qulqas, nom arabe du taro. Il s'appelle ചേമ്പ് - chēmbŭ en malayalam et சேம்பு - chempu en tamoul. L'interprétation de Ficalho est bonne. Mais bizarrement, carpata est un des noms du ricin (carapate en français des Antilles, cataputia en latin médiéval...). J'ignore par quel cheminement curcas est arrivé à désigner Jatropha curcas, le "ricin américain", qui correspond mieux à la description de "grains comme des noisettes" de Garcia (qui au demeurant peuvent se manger grillées) et au nom de carpata. En tout cas, dans ses commentaires à Monardes en 1574, Clusius dit que le Curcas Americorum est appelé curcas "par les habitants" (de l'Amérique), et il décrit bien le Jatropha. Jean Bauhin (1651, 3 : 643) parle du Ricinus major americanus, Curcas dictus & Faba purgatrix indiæ occiduæ. Le seul point commun entre ces deux plantes aussi différentes est l'usage du mot "fève" pour les désigner, "fève d'Egypte" pour le taro, et "fève purgatrice" pour le Jatropha. Tant Clusius que Jean Bauhin attribuent une origine populaire à l'usage de curcas pour Jatropha curcas. En tout cas, l'étymologie de curcas pour Jatropha curcas est constamment reprise par les botanistes, qui répètent tous que curcas est le nom commun au Malabar, assertion qui vient de toute évidence d'une interprétation fautive du texte de Garcia. J'ignore qui l'a affirmé en premier. MC.


RUANO

Encomendaramme e ensinaramme em Portugal que levase de qua tincal ; e porque se chama crisocola, será bem que façamos delle aqui mençam, e que o leve de qua.

ORTA

Si ; mas he das drogas defesas, e por pouquo perdereis o muyto.

RUANO

Não o quero levar, senam quero saber onde o ha e o nome delle.

ORTA

Chamase borax e crisocola, e tincar em arábio, e os Guzarates asi o chamam : não se usa na física indiana senão muyto pouco, e pêra sarna e cirurgia : nem nós a usamos muyto, senão entra no unguento cetrino, e nos outros afeites das molheres ; e pêra os dentes e sarna. E he mercadoria que se gasta em todas as partes, pêra o ouro e os outros metaes serem bem feitos e conglutinados ; e esta, que vay de qua, he minerio em huma serra que está apartada da cidade de Cambayete cem léguas nossas ; e trazem a vender ahi e a Amadabar[1], e vem das bandas de Chitor e Mandou, em muyta cantidade delle ; porque em todas as terras se gasta muyto (1).

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  1. « Madabar » na ed. de Goa ; mas por erro evidente. Veja-se o Coloquio anterior.


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RUANO

Pois nisto nam ha mais que falar, falemos no que chamais açafram da terra.

ORTA

Essa mézinha he pera falar nella, porque a usam Indianos médicos ; e he mézinha e mercadoria que se leva muyta pera Arabia e Persia ; e nesta cidade ha pouco delia, e no Malavar muyto, scilicet, em Cananor e Calecut. Chamão os Canarins a esta raiz alad ; e os Malavares também lhe chamão asi, mais propriamente manjale : e os Malayos cunhet ; os Persios darzard, que quer dizer páo amarello ; e os Arabios habet : os quaes todos, e cada um per si, dizem que não o ha na Persia, nem na Arabia, nem na Turquia este açafrão, senão o que vay da India.

RUANO

Parece rezam, pois esta he mézinha e tem nome arabio, que esteja por algum Arabio autor escrita ?

ORTA

Rezão tendes, mas não ouso afirmar as cousas sem primeiro as ver bem ; e porém eu tenho pera mim por certo que Avicena escreve deste açafram da terra no capitulo 200[1], chamandolhe calidunium ou caletfium ; e fala nisto Avicena como homem que o nam sabe bem ; e alega as sentenças doutros, como de cousa que não avia em sua regiam ; e não he muito enconveniente o nome arabio agora ser corrompido ; porque parece que os Arabios lhe chamavam como os índios, aled, e lhe corromperão o nome chamandolhe caletfium ; e mais me faz cuidar isto ser verdade ver, o capitulo de feçe de curcuma[2] ou curcumani, que também se conforma com elle ; e por tanto vede ambos, e achareis ser verdade o

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  1. Avicena, lib. 2, cap. 200 (nota do auctor) ; veja-se a nota (2).
  2. « De feçe », isto é de fæx, ou das fezes de curcuma ; veja-se a nota (2).


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que digo ; porque Avicena, quando duvidava de huma cousa, fazia della dous capitulos.

RUANO

Não me parece rezam isso ; porque diz que he meimiram, que sabemos ser cilidonia.

ORTA

Não tenho isto por muyto certo ; porque nestes dous capitulos faz esta mézinha amarella, e diz aproveitar muyto aos olhos ; e porque estas cousas convém á cilidonia, dixerão ser esta mézinha cilidonia ; mas muyto maior rezão será qualquer destes simples conteudos nestes capitulos ser açafram da terra.

RUANO

Pera que o usam nestas terras ?

ORTA

Pera tingir e adubar os comeres ; asi aqui como na Arabia e na Persia ; inda que lá aja o nosso açafram, usam deste por mais barato ; e qua usam do açafram também em fisica, mais que pera tudo, pera os olhos e pera a sarna, misturado com çumo de laranja e azeite de coquo. E pois nestes capitulos o louva Avicena pera estes efeitos, este deve ser, que asi he usado ; e Avicena falou com duvida nisto, porque por ser cousa fóra de sua terra o não sabia bem ; e por isso vos fique ser mézinha boa pera levar pera Portugal (2).

SERVA

As curcas que de Cochim vieram, quer vossa mercê que lhas façam em caril com galinha, ou que as lance no carneiro ?

ORTA

Em ambas as cousas as podes lançar ; e entanto traze hum pouco de açafram da terra, verde.

RUANO

E que cousa he curcas do Malavar ?


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ORTA São huns grãos brancos, mayores que avellans, com casca e não tam redondas ; sam brancas, e sabem como tubaras da terra cosidas ; e ha as no Malavar, onde lhe chamão chiviquilengas, que quer dizer ynhames pequenos : também me convidou com ellas em Çurrate, cidade de Cambaya, Coje Çofar, natural de Apulha, feyto mouro ; e dixeme que as avia no Cairo muytas, e que também lá se chamavão curcas ; e em Cambaia, donde isso era, me dixe que se chamavão carpata ; semeãose no Malavar, onde as eu vi primeiro, e naçem em ramos. E pois não he cousa de fisica, pasemos avante, sem mais falar nella ; e se vos souberem bem, levalaseis pera o caminho quando fordes (3).

SERVA

Vedes aqui o açafram verde e o seco ; scilicet, a raiz.

RUANO

Primeiro quero que me digaes se escreveu algum escritor deste simple, ao menos Arabio.

ORTA

Não me affirmo muyto aver capitulo desta mézinha ; senam falando por huma congeitura, acho que escreveo della o Serapio, e chamalhe abelculcut ; e está corrompida a letra, e ha de dizer hab alculcul, que quer dizer curcas, ou per ventura nós lhe corrompemos o nome em lhe chamarmos curcas. Isto digo porque hab quer dizer em arabio semente grande, e al he articulo de genetivo ; e também me movia dizer isto, porque o Serapio diz que o muyto uso dellas faz colerica passio, e que acresenta a semente ; e todas estas cousas dizem os mesmos Malavares, por onde me parece que tudo he hum. Também Rasis [1] falla destas curcas, e chamalhe quilquil, por ventura corrompidamente. E oulhay a raiz do açafram verde e sequa.

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  1. Rasis, 3, ad Almansorem (nota do auctor).


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RUANO

Por dentro he bem amarella ; e por fóra pareçe como gengivre ; e a folha he como da cana do milho ; he maior, e o ramo he feito de folhas [1] ; e a raiz nam queima, nem amarga muyto quando he verde ; e se queima, com a muyta humidade não se sente.

ORTA

Provay a seca : esta raiz queima, mas não tanto como o gengivre ; por onde me parece que não será mal tomada por dentro, e asi não ponho duvida em ser curcuma.

RUANO

A merce que de vós quero he que cuideis bem nisto, e saibais dos fisicos cada dia o que sabem della, e torneis a ver os capitulos : e eu também os verei oje, pera amanhã tornarmos a falar niso. E isto he bom, porque o que oje nam sabemos, amanhã saberemos.

ORTA

Quanto mais olho os capítulos, tanto mais me parece ser verdade o que digo ; porque alguns dizem que curcumani e meimiram he ruiva de tingir ; e ambas as raizes se parecem huma com outra. *

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  1. Esta expressão, um tanto singular na fórma, póde todavia applicarse ás folhas envaginadas de uma Scitaminea, ou de uma Musacea ; e prova que Orta examinou com attenção aquelles falsos caules, formados de peciolos sobrepostos.


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Nota (1)

O « borax », ou « crisocolla », ou « tincal » de Orta, era uma substancia bem conhecida, um borato de soda natural, que teve importancia no commercio ; mas hoje é geralmente substituido pelo que se prepara com o acido borico, extrahido das lagoni da Toscana.

O nome de chrysocolla vinha-lhe do seu emprego como fundente nos trabalhos de ourivesaria ; e o de tincal, aliás muito conhecido, é


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uma ligeira alteração do persiano — Orta diz arabico — تنكار, tinkar, que deve vir do sanskrito tankana.

Em muitos livros antigos e relativamente modernos, como nos tratados de Mineralogia de Dufrénoy, de Delafosse e outros, se lê a affirmação vaga de que esta substancia vinha da India ; mas não encontrei confirmação segura de tal noticia, e muito menos de que fosse « minério em huma serra... apartada de Cambayete cem léguas nossas ». Parece que se extrahia principalmente de alguns lagos do Thibet, e d'ali, pelos desfiladeiros do Himalaya, a traziam aos portos occidentaes da India. Vinha, portanto, pela India, e não da India. Orta, suppondo-a procedente das montanhas de Mandú e de Chitor, teve o mesmo engano, que já no Coloquio anterior tivera a proposito do costo.

É conhecido o uso industrial d'esta substancia no trabalho dos metaes ; e o seu emprego na medicina indiana foi também mencionado por Ainslie, se não propriamente na « sarna », pelo menos em affecções aphtosas e cutâneas (Cf. Ainslie, Mat. ind., I, 45).

Pelo que diz Orta se vê, que era « droga defesa », isto é, cujo commercio estava vedado aos particulares. Já, nas notas ao Coloquio anterior, vimos como o costo e o incenso eram drogas defesas no trato com a China, e a proposito da pimenta teremos occasião de fallar mais largamente d'estas prohibições.


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Nota (2)

O « croco indiaco » de Orta é o rhizoma da Curcuma longa, Linn., uma planta da família das Scitamineæ, cultivada com frequencia na India e outras terras da Asia. Esta droga é chamada pelos inglezes turmeric, o que parece ser a corrupção de um nome da antiga pharmacia, terra merita ; mas é mais geralmente designada pelo nome de curcuma, do persiano kurkum.

Vejamos agora os nomes vulgares do nosso escriptor :

  • « Alad » entre canarins e malabares. Este é o conhecido nome hindi e bengali, halad (Dymock, Mat. med., 764).
  • « Manjale » entre malabares. O nome tamil manjal (Dymock, 1. c.).
  • « Cunhet » entre malayos. Varias fórmas d'este nome se usam nas diversas partes do archipelago, por exemplo, cunjet, entre as gentes de Macassar (Rumphius, Herb. amb., V, 165).
  • « Habet » entre arabes. É um nome que não encontrei, quer esteja muito alterado, quer escapasse ás minhas investigações.
  • «Darzard» entre os persas, significando «pau amarello». A explicação é exacta ; dar significa pau ou madeira, e zard amarello. No nome hoje mais usado da droga, zard-chubah, entra o mesmo adjectivo (Dymock, 1. c.).


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  • Alem de citar estes nomes orientaes, Orta designa a droga pelo de croco indiaco e açafrão da terra [1]. Apesar de o rhizoma da Curcuma ser uma cousa absolutamente diversa dos stigmas do Crocus, que propriamente constituem o açafrão, houve sempre uma certa tendencia a approximar as duas substancias, pelo facto de servirem para temperar a comida e de a tingirem fortemente de amarello. É assim, que um dos nomes do açafrão, kurkum, veiu a designar mais especialmente a curcuma. Ibn Baithar explica claramente esta deslocação de nome. Fallando do rhizoma da curcuma, diz assim : ... « os habitantes de Basra chamam a esta raiz al-kurkum, e al-kurkum é o açafrão ; e chamam-lhe açafrão, porque tinge de amarello como faz o açafrão (Ibn Baithar, versão de Sontheimer, citado por Yule e Burnell, Glossary, palavra saffron).

O commentario do nosso Orta aos capitulos de Avicenna é muito confuso, porque a questão é muitissimo obscura. O capitulo, que elle chama : « de feçe de curcuma ou curcumani », é o cap. 165, e começa por estas palavras : Crocoma quid est ? Dicitur quod est fæx olei de croco... O resto do capitulo, aliás curtissimo, nenhum esclarecimento dá. E por aquellas palavras, o medico arabe parece referir-se aos residuos de algum preparado do Crocus, e não á Curcuma.

O outro capitulo citado (199 e não 200, como Orta diz) intitula-se : De Caucho i. Chelidonio maiori. Em notas marginaes vem os nomes mencionados por Orta, Chalidunium e Chaledfium. O texto de Avicenna diz assim na versão : Chaucum quid est ? Dixerunt quidam, quod est Vene. Et ipsa quidem dicitur Memiran. Et dixerunt alii, quæ de ea est parva est Memiran, et quæ est magna, est Alvardachale, vel Alvardachule, vel Alxardahune. Como se vê, a trapalhada não póde ser mais completa, e difficil será encontrar a explicação d'este enygma. Na exposição do Bellunense temos a seguinte informação : venæ citrinæ apud Arabes sunt curcuma, apud alios vero sunt radices memiran. Da primeira parte póde deduzir-se, que Avicenna quiz fallar da curcuma, como suppoz Orta ; mas na segunda apparece-nos de novo o memiran. D'éste, diz o mesmo Bellunense : Memiran est radix nodosa, non multum grossa, citrini coloris sicut curcuma . . . et aportatur ex India... et usitatur in passionibus oculi. Como se as cousas não estivessem ainda bastante enredadas, vieram os commentadores, e disseram que o memiran dos árabes era o κελιδόνιον μέγα dos gregos, e que este era a vulgar celidonia maior (Chelidonium majus, Linn.). Orta conhecia esta identificação, e — com toda a rasão — a põe em duvida, e se mostra pouco disposto a acceital-a. Mas, apesar de conhecer muitas drogas da India, não conhecia todas, e não conseguiu desfiar completamente a meada.

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  1. Isto é, d'aquella terra. Esta expressão portugueza da terra, geralmente mal interpretada pelos traductores, e que significa o que é próprio da região, em opposiçáo ao que vem de fóra, é equivalente ao qualificativo arabico beladi.


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O que parece provável, é que Avicenna e outros arabes conhecessem muito imperfeitamente varias drogas, consistindo em raizes ou rhizomas mais ou menos grossos, mais ou menos amarellos na fractura, trazidos em geral da India, e alguns considerados efficazes no tratamento das doenças de olhos. É claro, porém, que não distinguiam bem essas drogas entre si ; e é hoje extremamente difficil procurar o que fosse o alvardachale ou o alvardachule. O que se póde apurar como provável, é que, sob o nome de Venæ, de Memiran e outros, elles se deviam principalmente referir a tres drogas :

  • os rhizomas da Curcuma longa, Linn., de que antes fallámos;
  • os do Coptis Teeta, Wallich, uma planta da familia das Ranunculaceæ, espontanea nas montanhas de Michmi, a leste do Assam, e que ainda hoje se encontram nos bazares da India, são considerados um medicamento importante nas doenças dos olhos, e são designados pelo nome de mahmira ;
  • os do Thalictrum foliosum, D. C, da mesma familia, que procedem das vertentes do Himalaya, têem nos bazares do Panjáb o nome de momiri, e são muitas vezes confundidos com os da planta precedente.

A primeira droga, a Curcuma, era bem conhecida de Orta ; mas as outras duas vinham de mais longe, deviam ser raras nos bazares, sobretudo nos bazares da costa, e não admira que escapassem ás suas investigações. Por isso elle se achava um pouco desarmado em frente da intrincada e barbara nomenclatura de Avicenna. É certo, no emtanto, que se não sabia bem o que fosse o memiran, não estava nada disposto a admittir que fosse a celidonia, e n'isso tinha toda a rasão (Cf Avicenna, lib. I, tract. II, cap. 165, 199 e 486 ; Andreæ Bellun. Arabic. nom. interpretratio, palavras venæ e memiran ; Yule e Burnell, Glossary, palavra mamiran ; Pharmacographia, 3 ; Pharmacopœia of India, 4 e 5).

O uso da curcuma para « tingir e adubar os comeres » é vulgarissimo em todo o Oriente, sendo um dos ingredientes essenciaes do caril. É considerada também cordial e estomachica ; applicada ao tratamento das doenças cutaneas, e, segundo o nosso padre Loureiro, ao de variadissimas enfermidades (Cf. Drury, Useful plants, 169 ; Ainslie, Mat. ind., I, 454 ; Loureiro, Flora Cochinchinensis, I, 9).


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Nota (3)

As « Curcas » do nosso escriptor não são muito fáceis de identificar [1]. Apesar de elle dizer que « nacem em ramos », creio que deve fallar de

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  1. No meu trabalho sobre Garcia da Orta (p. 216) identifiquei-as sem bastante reflexão com a Curcuma angustifolia, o que é evidentemente um erro.


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órgãos subterrâneos ; e por isso faz a referencia aos « ynhames », e ao gosto de « tubaras da terra ». Parece pois que seriam uma espécie de Colocasia, e provavelmente a Colocasia indica (Arum indicum de Loureiro e de Roxburgh). Esta espécie tem uma raiz fibrosa, e numerosos tuberculos pendentes, por onde elle poderia dizer « nacem em ramos ». Alem d'isso os tuberculos são comestiveis, e entram ás vezes na constituição do caril, como Orta diz das curcas (Cf. Roxburgh, Fl. indica, III, 498).

Parte dos nomes vulgares, que Orta cita, pertencem no emtanto á espécie mais conhecida, Colocasia antiquorum, Schott.

  • O primeiro é o de curcas, o qual, segundo Orta diz, era também usado no Cairo, onde a planta era bem conhecida. Prospero Alpino, que, no seculo de Orta (1580-1584), viu a Colocasia antiquorum cultivada no Egypto, diz que lhe chamavam culcas ; e o botanico francez, Delile, dá o mesmo nome nas fórmas qolkas e koulkas (pronunciar kulkas). O sr. Dymock menciona um nome arabico moderno, kalkás. De culcas para curcas vae uma leve e facil alteração (Cf. De Candolle, Orig. des plantes cultivées, 59 ; Dymock, Mat. med., 818).
  • « Chiviquilengas » lhe chamavam no Malabar. Esta designação, apesar de muito alterada, é claramente o nome tamil da Colocasia antiquorum, que Dymock dá na fórma shema kalengu, e Drury na fórma shema kilangu (Cf. Dymock, 1. c, 817 ; Drury, Useful plants, 154).
  • Não encontrei o nome de « carpata », usado em Cambaya, segundo Orta.

Em resumo, a curtissima descripção do nosso auctor indicaria de preferencia a Colocasia indica, emquanto os nomes vulgares se podem melhor referir á Colocasia antiquorum. É, porém, admissivel que os seus informadores applicassem á primeira especie alguns nomes da segunda, que era muito mais conhecida.

É interessante virmos encontrar Coge Çofar, o grande inimigo dos portuguezes, o instigador e a alma dos cercos de Diu, mandando presentes de curcas a Garcia da Orta, e ensinando-lhe como se chamavam no Cairo. Orta dá-o como natural « da Pulha », e n'isto se conforma com outros escriptores nossos ; Couto, que o diz natural de Otranto ; e Barros, que, especificando mais, affirma que elle nascêra em Brinde ou Brindisi, e era filho de um albanez e de uma italiana.

Este mestiço, homem de « ardiz e invenções », é um perfeito exemplar do aventureiro levantino d'aquelles tempos. Captivo em rapaz pelos turcos, cujas galés corriam e infestavam então as costas da Apulia, fez-se mahometano, e andou depois mettido nas armadas dos mamelukos, dos turcos e dos rumes, como homem de guerra ou homem de finança — umas vezes « capitão de uma galé », segundo refere Couto ; outras « tisoureiro » da armada, segundo assegura Gaspar Corrêa. Vemol-o embarcado já na armada, que pelo anno de 1516 o chamado Soldão de Baby


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lonia, — o ultimo soberano mameluko do Egypto — mandou contra os portuguezes da India. Muitos annos depois, no de 1537, guando a grande armada de rumes foi atacar Diu, Coge Çofar, já então estabelecido na India, e que preparara o ataque por terra, veiu logo a bordo combinar as operações com Soliman Pachá, como conta uma testemunha ocular : «... venne un chiamato il Cosa Zaffer, il quale é da Otranto, ma renegato, et fatto turcho, et era patrone di una galea quando il Signore Turcho mando l'altra armata... » E finalmente, no segundo cerco, Coge Çofar foi o instigador, o agente diplomático, e quasi o general em chefe das forças mussulmanas, que se congregaram contra os portuguezes. Dirigiu todas as operações do cerco, até que, no dia 24 de junho de 1546, dia de S. João Baptista e de Corpus Christi, « que se acertou este anno todo em hum dia », estando a observar a fortaleza, com a cabeça de fóra de um muro, « passou per hy hum pilouro perdido, que lh'a levou com a mão direita, sobre que a tinha acostada ». E assim morreu no seu posto um dos homens, que mais habilmente e com mais persistencia combateram a influencia dos nossos nas terras do Oriente.

(Cf. Barros, Asia, III, I, 3 ; Couto, Asia, IV, III, 6 ; Gaspar Corrêa, Lendas, III, 380, IV, 479 ; Viaggio di Alessandria nelle Indie, pag. 149, que faz parte de uma collecção : Viaggi fatti da Vinetia alla Tana, etc. impressa em Veneza, 1545. Esta curiosa relação de um prisioneiro italiano, que ía nas galés turcas, vem também na collecção de Ramusio, com o titulo : Viaggio scritto per um comito venetiano.)

Nos intervallos, porém, d'estes rompimentos de guerra, o intelligente e dissimulado italiano dava-se por muito amigo dos portuguezes ; e prestou mesmo importantes serviços a Nuno da Cunha, quando foi da morte de Bahádur Schah, ajudando-o a pacificar a cidade de Diu. Talvez de haver sido « tisoureiro », e sobretudo pelo valimento do rei do Guzerate, havia-se tornado extremamente rico ; e habitava umas vezes Diu e outras Surrate, onde levava a vida de um grande senhor oriental. Ali o conheceu o nosso Orta, e ali recebeu d'elle o presente das curcas.

Orta chama-lhe Coge Çofar, e Coge Çofar ou Coge Sofar lhe chama também Barros, e a maior parte dos escriptores portuguezes. Gaspar Corrêa escreve Coje Çafar, ao que parece com melhor orthographia. O veneziano, que citámos, escreve o nome Cosa Zaffer, e julgo que mais correctamente seria Khuádja Tzaffar, خواجه ظفّر.