Coloquio 28 (Garcia da Orta)

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Coloquio 27
Garcia da Orta, Coloquios dos simples, 1563
Coloquio 29

[II, 23]

Que trata da jáca et dos jambolões e dos jambos e das jamgomas


INTERLOCUTORES
RUANO, ORTA, SERVA, CAPITÃO


[23]

RUANO

Que fruita he aquella que he do tamanho de nozes grandes ?

ORTA

Já comestes das castanhas que tem dentro, e dixestes que asadas sabiam a castanhas ; e agora comereis as cascas que a cobrem, e sam amarelas e tem bom sabor.

RUANO

Sabem a melam, não tam bom como os milhores.

ORTA

Asi he ; e sam per sua viscusidade más de degerir, ou, por milhor dizer, não se degerem ; e muitas vezes saiem pola camara sem nenhuma permutaçam ; e eu nam uso muito dellas. Chamamse em malavar jácas ; em canarim e guzarate panaz ; e na fralda do mar as ha. Somente se sequam estas castanhas de dentro, e comemnas asadas e ás vezes cozidas. O arvore dellas he alto e grande, e ellas nacem no pao do tronquo pera sima, e não nos ramos como as outras fruitas ; e por fazer mais certo, aqui vos amostrarei a jáca, donde estas foram tiradas. E vedela aqui, que he tamanha como hum melão muyto grande, e ha outras maiores ; e a corteza que cobre estas castanhas todas he muita grossa, como vereis, e dura, e pera nada serve.

RUANO

Não ha melão tam grande, nem tam fermoso, como este pomo.


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ORTA[1]

He verde escuro, e todo cercado de espinhos, mais pequenos que os do ouriço quacheiro ; mas estes não picam, como o piquo delle : e não me pareçe bem comerdes esta jáca senão ao cabo de comer, e entonçes comereis as castanhas assadas deste mesmo pomo, que já o outro dia comestes (1).

RUANO

Comerei estas azeitonas, que asi o pareçem ; mas sam muyto ponticas, porque apertam muyto ; e no demais pareçem azeitonas cordovesas já maduras.

ORTA

Chamamse jambolões, e naçem no campo em huma mata que pareçe como murta, e nas folhas pareçe medronho ; mas asi esta fruita como a jáca nâo se tem por fruita muito sadia da gente desta terra (2). Mas esta que vos mostro he muyto estimada nesta terra ; veo de Malaca a esta terra ha pouquo tempo, porque ha muytas naquellas partes. Mas dizei a que vos pareçe este pomo, pois he do tamanho de hum ovo de pata, e algum tanto maior : já vedes como a cor delle he feita de branco e vermelho, e cheira a aguoa rosada, de maneira que aos dous sentidos he aprazivel. Agora he necesario, porque pareçe bem a vista e ao cheiro, que seja ao gosto ; e por isso provaio.

RUANO

Já o provei, e sabe muito bem; convem a saber, hum sabor que náo emsita muito o gosto por ser aquoso este fruito ; e pera mim o sabor he muyto bom ; mas o cheiro e a vista pareçe como humas bugualhas grandes, quando sam novas (a que chamamos maçans de cuquo), e dizeime como se chama esta fruita nesta terra onde a ha.

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  1. Falta a palavra « Orta » na edição de Goa ; o que se torna evidente pelo sentido, e por que vem a seguir as duas observações de Ruano.


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ORTA

Em Malaca he chamada jambos ; e asi lhe chamão nesta terra.

RUANO

Melhores sam estes que os jambolões ; porque já ouvi guabar muyto esta fruita ; diguo que tambem he aprazivel aos ouvidos com a fama, de modo que apraz a quatro sentidos. He certo que he esta fruita pera comer hum principe na nossa Espanha ; e mais não me pareçe que fará mal, se a comerem antes do comer ; e bem vejo que he fria e humida ; e portanto me dizei a feiçam do arvore.

ORTA

Desta varanda vereis nesta orta minha os arvores : aqueles pequenos sam postos ha dous annos, e em quatro dão muyto boa fruita, e carreguão muyto, muitas vezes no anno ; asi o arvore como a fruita sam de feição oval[1], e sam do tamanho como huma amexeira ; a frol he muyto cheirosa e he roxa ; e o sabor he das azedas ; a folha he como hum ferro de lança, grande e larguo, e de hum verde muyto aprazivel ; as raizes deste arvore entram muito dentro na terra, pera sustentar o arvore quando carrega, porque da muytas vezes fruita no anno : asi da fruita como da frol se faz conservas (3).

SERVA

Hum bornem está aly, que traz requado do rendeiro de Bombaim.

ORTA

Venha qua.

CAPITÃO

Estas cartas me deu o vosso rendeiro, e este cesto de jamgomas.

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  1. Comprehende-se que o fructo seja oval, mas não sei bem o que Orta quer dizer em relaçâo á arvore.


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ORTA

As cartas lerei despois ; a fruita provemos, e apertaia primeiro entre os dedos, porque se quer asi.

RUANO

Sabe bem, e parece na feiçam como sorva pequena, e no sabor como ameixa ; he no sabor estitiqua.

ORTA

Ha muitas nas ortas de Baçaim e Chaul, e tambem as vi em Batecalá ; o arvore dellas he como amexieira e asi na folha ; enfloreçe com flores brancas ; tem muytos espinhos no tronquo ao sobir, a modo de pinha. Chamam-se jamgomas, e pella mayor parte naçem no campo : tambem se dam trasplantadas ; e homens dinos de fé me dixeram que a melhor maneira de semear era comendoas huma certa ave, e no esterquo della se acha a simente, a qual semeam, misturada com este esterco (4); e naçe e dá mais asinha fructo (5).


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Nota (1)


A jaqueira - designação applicada á arvore pelos portuguezes, e derivada do nome do fructo - é o bem conhecido Artocarpus integrifolla, Linn., Jack-tree dos inglezes, da grande familia das Urticaceæ. Chamam-lhe no norte da India phanas ou panasa, o « panaz de Orta » ; e em lingua tamil pila ou pala, sendo, porém, o nome de jaca, com variadas orthographias, aquelle que todos os viajantes da Europa e do Occidente adoptaram sempre de preferencia.

O nosso escriptor está longe de ser o primeiro que fallou d'esta planta, de porte muito notavel, e que em todos os tempos attrahiu a attenção dos viajantes, mesmo d'aquelles que se não dedicavam especialmente ao estudo da historia natural. Vimos nas notas ao Coloquio vigesimo segundo, como sir H. Yule pretendeu identificar a pala de Plinio com a jaqueira. Esta opinião - guardado todo o respeito devido áquelle illustre indianista - levanta, porém, não pequenas objecções ; e eu julgo mais segura a que identifica simplesmente a pala de Plinio com a bananeira. Posto de lado Plinio, ficam-nos muitos viajantes da Idade media, os quaes fallaram da jaqueira de modo tão claro, que


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nos não podem deixar duvidas. 0 ingenuo fr. Jordão, por exemplo, tem nas suas Mirabilia a seguinte phrase : ...nam sunt quædam arbores quæ fructus faciunt valde grossos, qui Chaqui vocantur, et sunt fructus tante magnitudinis, quod unus sufficiet circiter pro quinque personis, phrase que sem duvida alguma se applica á jaca e jaqueira. Ainda mais explicito é fr. João de Marignolli ; descrevendo as arvores do paraiso terrestre, e parecendo que, em táo difficil assumpto, se devia limitar a algumas vagas indicações, dá-nos no emtanto uma descripção exactissima e correctissima da jaca, a que chama chakebaruke. Depois de fr. João, varios viajantes, como Ibn-Batuta, Varthema e outros, fallaram da jaca, e da arvore que a produz. É certo, pois, que Garcia da Orta nos não diz nada de novo, dando-nos no emtanto algumas indicações interessantes e exactas (Cf. Mirabilia no Recueil de Voyages, IV, 42 ; Yule, Cathay, 362 ; e para mais indicações o interessante artigo de Yule e Burnell, no Gloss. 335).


Nota (2)

Os jambolões de Orta são o fructo da Eugenia jambolana, Lam., uma arvore da familia das Myrtaceæ, bastante commum na lndia. O nome hindustani do fructo جمون djamún ; e em Bombaim chamam-lbe tambem jámbúl, parecendo que o nome de jambolão - pelo menos na sua desinencia - seria um arranjo portuguez [1]. Este fructo, que comem na India apesar de muito « pontico », tem uma notavel semelhança com as azeitonas, semelhança que um puro alemtejano, como era o nosso escriptor, não podia deixar de notar. Dois seculos antes, um viajante tambem das nossas partes do Occidente e da Hespanha, o mouro Ibn Batuta, tinha do mesmo modo comparado o jámún com a azeitona.

  1. Se não é simplesmente o nome malayo جمبلن djambelan.


Nota (3)

O jambo é o fructo de uma especie do mesmo genero Eugenia - posto que planta e fructo, e sobretudo este, sejam no gosto e no aspecto muito diversos - a Eugenia malaccensis, Linn. Note-se que Orta conhecia a sua procedencia de Malaca, e nos indica que a introducção d'esta planta, depois vulgarissima na India, nio era então muito antiga.


Nota (4)

As jangomas são o fructo da Flacourtia cataphracta, Rosb. (Flacourtia jangomas Miq., Stigmarosa jangomas, Loureiro, Roumea jangomas, Sprengel). Esta synonymia, assim como a


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descripção de Orta, a menção dos numerosos espinhos do tronco, o aspecto do fructo, não podem deixar duvida sobre a identificação. Ainda hoje em Bombaim chamam ao fructo jaggam, o que Dymock considera como uma corrupção de jangoma. Este ultimo nome, que era vulgar no tempo de Orta, e foi adoptado pelos antigos botanicos que descreveram a planta, devia ser - como já observámos a proposito dos jambolões - um arranjo portuguez, especialmente usado nos nossos estabelecimentos da costa, onde, nas hortas de Chaul, Baçaim e outros pontos, se encontrava com frequencia a planta cultivada (Cf. Dymock, Mat. med., 74 ; para a synonymia, Hooker, Fl. of British India).


Nota (5)

Este Coloquio dá-nos duas indicações valiosas para a biographia do nosso escriptor. Em primeiro logar mostra-nos, que elle habitava em Goa uma casa sua, em cuja horta fazia plantações de arvores, com a segurança de um proprietario, ou pelo menos de um arrendatario a longo praso ; e em segundo diz-nos que elle tinha arrendado da sua mão - como foreiro que era - a ilha de Bombaim. De um e outro ponto, e particularmente do ultimo, tratei já com certa largueza na Vida de Garcia da Orta.