Coloquio 7 (Garcia da Orta)

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Coloquio 6
Garcia da Orta, Coloquios dos simples, 1563
Coloquio 8

[I, 75]

COLOQUIO SETIMO DO ALTIHT, ANJUDEN, ASSA FETIDA, E DOCE, E ODORATA, ANIL


Noms acceptés :



INTERLOCUTORES
RUANO, ORTA


RUANO

Saibamos do que se chama altiht e anjuden, assa-fetida, e doce, e odorata ; pois antre ella e laserpicium põem os doctores alguma diferença.


ORTA

E eu tenho n'esses nomes mais confusão que vós, e isso foy porque nunca me souberam dizer a feiçam, nem os nomes deste arvore donde mana esta goma ; porque me dizem que huma vem do Coraçone a Ormuz, e de Ormuz á India ; e também achei qua que vem do Guzarate ; e ay dizem que vem do reino Dely, terra muito fria, que pella outra banda confina com o Coraçone e com a região de Chiruam (1), como sente Avicena[1]. E sem duvida esta goma he chamada altiht em arabio e outros antit a dizem : e como a qualquer arabio lhe mostraes esta goma, dos Indios chamada imgu ou imgara, por o mesmo nome a nomeão que vos disse ; e o arvore de que se tira ou mana se chama anjuden, e outros o nomeam angeidan. E como esta mercadoria vem muito polla terra dentro, he trabalhoso saberse no certo a feiçam do arvore ; nem he por isso muito chamala Avicena por muitos nomes, porque póde ser que em huma terra tenha

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  1. Avic. li. 2, ca. 53 (nota do auctor). O texto é pouco claro, e deve entender-se que é o Coraçone, e não o reino Dely, que confina com a região de Chiruam ; veja-se a nota (1).


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hum nome, e em outra outro, scilicet, em huma altiht e em outra almharut, porque é sabido que estas terras donde vem tem as lingoas diversas.


RUANO

E qual foy a causa porque o trasladador trasladou assa ?


ORTA

Eu não creo que o tradutor escreveo assa, senão laser, e corrompendose o nome se chamou assi, porque o tempo gasta tudo.


RUANO

Primeiro que vejamos se assa fetida he o mesmo que laser ou laserpicium, vos digo que altiht nam me parece ser nome do arvore, senam de çumo de alcaçuz, embastecido e engrossado ; e isto sentio Gerardo Cremonense no capitulo da falta do coito em Rasis, que assi o interpretou[1].


ORTA

Gerardo Gremonense nam era bom arabio, mas era andaluz, e a lingoa propria em que Avicena escreveo he a que se usa na Siria e Mesopotamia, e na Persia ou Tartaria (donde Avicena era) e a esta lingoa chamam elles araby e a dos nossos Mouros magaraby, que quer dizer mouro do ponente, porque garby em arabio quer dizer ponente e ma quer dizer dos, e portanto não he muito errar nisto Gerardo ; e digo que altiht não quer dizer senão o arvore da assa fetida, e muytas vezes se toma a goma por o arvore : e que isto seja verdade se vê acerca de nós, e muito mais acerca dos Indios se põe a assa pera levantar o membro, e elles o tem muito em uso : logo não vem a proposito pera a deminuiçam do coito usar o tal çumo de alcaçuz ; e nas Divisões[2] põe Rasis o altiht por mézinha pera as festas de Venus.

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  1. Gera. sobre Rasis (nota do auctor).
  2. Nas Divisões, isto é no Liber Divisionum.


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RUANO

E se o altiht nam he assa dulcis, que he assa dulcis ?


ORTA

Assa dulcis nam põe doctor arabio, nem grego, nem latino, que seja de autoridade ; e se a põe, erra ; porque o alcaçuz se chama em arábio çuz, e o çumo delle cozido e reduzido á forma de arrove, chamão os Arabios robalçuz, e os Castelhanos corrompendo o nome o chamão rabaçuz ; de modo que robalçuz he um nome composto de rob, que em arabio he çumo feito basto, e al he articolo do genitivo, e quer tanto dizer como çumo basto de alcaçuz ; e assi daqui ávante nam chamemos a este çumo assa dulcis (2).


RUANO

Bem me parece essa derivaçam ; mas antes que vos pergunte porque laserpicium he assa, quero florear como esgrimidor e saber de vós como Avicena he da terra dos Tartaros, e como a lingoa da nossa Africa nam he tam boa como a da Siria e Arabia.


ORTA

Avicena he craro ser destas partes, e nam de Espanha ; e os fisicos da Persia e da Turquia, que curão aquelle rey que vos já nomeey, me dixeram que Avicena era de huma cidade chamada Bochorá, a qual cae em a província dita Uzbeque, que he parte da Tartaria, que nós chamamos, ou dos Moguoras, como elles chamão qua ; bem que Andreas Belunensis chame áquella parte Persia, mas isto he largo modo tomando Persia, porque Persia he pequena regiam. E depois soube de mercadores discretos e curiosos, que muito tempo moraram em Ormuz, e pergunteylhe que cidade era Bochorá, e me dixeram que caya na parte de Uzbeque, e que avia nella[1] e nessas partes muito maná, e também isto me dixe Coge Perculim, bom letrado a sua

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  1. « Nellas » na ed. de Goa.


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guisa, estante em Goa. E porque dixe o sobrinho do Belunense ser Avicena pessoa, por suas letras, valido e fidalguo, lhe perguntey se fora rey, e dixeme que não, senam que fora goazil, que entre elles quer dizer regedor ou grande (3).


RUANO

Pareceme ser verdade isso ; porque nós, por as coronicas de Espanha, sabemos os reys que nesse tempo concorriam em Cordova e Sevilha, e nam achamos este ; e comtudo eu creo bem que era pessoa poderosa onde quer que estivesse.


ORTA

Respondendo á outra questam digo, que he trabalhosa cousa provarse huma lingoa ser milhor que outra ; e porém dizem estes fisicos e outros letrados, a que chamão Mullás, que as obras de Avicena e Galeno e dos filosofos Gregos, e as do falso profeta, erão escritas em lingoa da Syria, e a estoutra lingoa da nossa Africa chamão barbara, e aos nossos Mouros magaraby, e assi por esta razam chamão os Mouros da Persia e Arabia ás nossas terras, que nós chamamos Algarves, Algarby, que quer dizer Mouros do ponente, porque o nosso Algarve está ao ponente. E já me pesa porque tanto me detive nestas cousas, que nam fazem ao caso, mas a culpa he vossa (4).


RUANO

Eu folguo muyto de saber isso, que qua nam tendes em muyto ; portanto eu tomo a culpa sobre mim : mas se laserpicium não he assa fetida, nem he odorifera, scilicet, aquelle laserpicium que escreve Dioscorides e Plinio, nam parece ser o altiht que escreveu Avicena, nem outros Arabios.


ORTA

Os Arabios que deste simple fazem mençam que são Arabios, falão pouco delle, como são Rasis e Avenrrois, mas se olhardes Serapio falando em altiht, diz tudo aquillo que dizem Galeno e Dioscorides em laserpicium.


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RUANO

Por muitas razões vos provarey serem diversas mézinhas, scilicet, assa fetida e laserpicium ; porque laserpicium he mézinha pera a cosinha e pera curar, e assa fetida aproveita pera mezinha somente, e isto per si só e muito poucas vezes, e para se usar em cozinha danaria todos os comeres por ter tam horrendo cheiro.


ORTA

Nam vos leixarey com esse error yr ávante, porque se quereis saber minha entençam he necessario que deiteis de vós as affeições que tendes a estes escritores novos, e folgueis de ouvir minhas verdades ditas sem cores rhetoricas, porque a verdade se pinta nua.


RUANO

Muitas vezes vos dixe que nenhuma cousa desejava mais, que tirar de mim os errores que tenho, e semeardes em meu intendimento novas sementes.


ORTA

Pois sabey que a cousa mais usada que ha em toda a India e per todalas partes della he esta assa fetida, assi pera mézinhas como pera cozinha ; e guastase nestas partes grande quantidade della, porque todolos gentios que podem alcançar a comprarla, a comprão pera deitar nos comeres ; e se são ricos, comem muyto della, como são os Baneanes e todo o gentio de Cambaya, a quem imitou Pythagoras. Estes a deitão nos bredos e hortaliças que comem, esfregando o caldeiram com ella primeiro, e he adubo ou salsa[1] e condimento pera todo seu comer ; e todos os outros gentios que a podem comer, a comem ; e os trabalhadores que nam tem mais que comer que pam e cebollas, nam a comem senam quando tem della muyta necessidade ; e os Mouros

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  1. Salsa, tomada a palavra no sentido hespanhol de tempero em geral.


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tambem a comem, mas he em menos quantidade, somente porque a acham medicinal. Hum mercador portuguez me gabou muyto os bredos que faziam estes Baneanes, que levam esta assa fetida, e eu os quis provar e acheyos algum tanto apraziveis a meu gosto, e porque a mim nam me sabem bem os nossos bredos, nam os achei tam saborosos como os achou o portuguez que mo dixe. Ha hum homem nestas partes honrado e discreto, ornado com carregos de elrey, que come esta assa fetida pera lhe fazer apetite de comer ; pera o qual diz que o acha muito bom, e toma delle quando tem necessidade duas oytavas ; e diz que tem hum pouco de amargor, mas que o amargo he apetitoso como o da azeitona, e que isto he ante de o enguolir, porque diz que depois de enguolido, fica a pessoa que o tomou muito contente : e quanto he á gente desta terra, todos me dizem que lhe sabe bem, e lhe cheira bem.


RUANO

E vós achastes máo cheiro aos bredos que provastes ?


ORTA

A cousa que me mais mal cheira do mundo he assa fetida ; e nos bredos não me cheirou mal ; e não vos maravilheis muito disso, que a cebolla e o alho tem muito máo cheiro, e os comeres adubados com ellas muito bom ; e também vos sey dizer que os costumes dos cheiros vos fazem que vos sejam mais apraziveis, como de mim sey que o betele (este que de contino trazem na boca mastigado), a todos os que o comem cheira muito bem, e a mim muito mal, não mais senão porque o nam posso comer. He qua mézinha usada per si só, contra o que dizeis que se não usa senão em compostos : nisto sois enganado, assi como se enganou Sepulveda, porém Guarinero[1] e muitos usão

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  1. Sepulveda, Guainero (nota do auctor).


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della per si só. Acerca dos Indios he boa pera o estomago, e pera que não sae bem he pera gastar a ventosidade. Hum portuguez em Bisnaguer tinha um cavalo de muito preço, o qual deitava de si muita ventosidade, e elrey por isso lho não queria comprar : o portuguez o curou dandolhe a comer este ymgu com farinha; elrey lho comprou mui bem depois de sáo, e lhe perguntou com que o curara, e dixe-lhe que com ymgu ; respondeulhe elrey, não te maravilhes disto, porque lhe déste a comer o comer dos deuses, como dizem os poetas nectar : respondeolhe então o portuguez, com a voz mais baixa em portuguez, que milhor lhe chamara manjar dos diabos[1].


RUANO

De huma duvida me tiray : como o comem os Baneanes tam continuadamente, dizendo Matheus Silvatico que he veneno, e alegua a Galeno pera isso ?


ORTA

Ja vy Galeno e os simplecistas Gregos, e nenhum diz tal cousa ; antes diz ser bom pera a peçonha e peste, e lumbrigas e mal de rayva, que sam contrairos effectos, por onde lhe podeis ao Matheus Silvatico perdoar esse error como outros muytos. Qua o metem os Indios na cova do dente furado que dóe ; e se Plinio diz[2] que hum que o meteo no dente lhe deu tam grande dor que se deitou de huma janela abaixo, seria isto por estar muita cheo de humores, e mover a mézinha muito.


RUANO

He de muito preço nesta terra esta mézinha ?

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  1. Parece que acima, onde diz « pera que não sae bem », se deve ler « pera que sae bem »
  2. Pli. lib. 33, cap. 23 (nota do auctor). A citação, como varias outras, está errada ; e Plinio diz o que o nosso auctor refere, no livr. XXII, cap. 49.


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ORTA

Si[1] (porque acerca de nós vale pouco), e a causa he porque della se gasta muito, e se apercebem os homens de a ter de sobejo, porque he como mantimento. Ha muita no Mandou e Chitor e Dely ; e afora isso vem de Ormuz, como mercadoria pera Pegu e Malaca e Tenassarim, e essas partes ; e quando falta val muito em estremo.


RUANO

Usão da raiz ou folhas della, porque é louvada dos antigos a raiz e as folhas, e rama ?

ORTA

Já vos dixe que nam vira o arvore, nem me sabião dar razam delle ; mas que nenhuma gente, das que eu conheço, usão senam da goma, a qual dizem que se tira dando cutiladas no arvore : e isto me dixe o homem, que acima dixe, que comia esta mézinha, e mais me dixe que lhe dixeram a feiçam da folha, a qual lhe debuxaram ser como a das nossas avelaneiras ; e assi lhe dixeram que, para se conservar esta goma, se guardava em coiros de boy, untados primeiro com sangue e mesturada com farinha de trigo ; por onde quando lhe lá acharem cousa que pareça farelos, não tenham que he falsidade, como escrevem alguns, antes he certificaçam. E nam faleceo quem dixesse a hum baneane letrado, que porque comia esta mézinha, pois vinha mesturada com sangue de boy : respondeo que era tal a mézinha que nam se havia de guardar nella essa regra.


RUANO

O laserpicium antiguo tinha a cor algum tanto ruyva e translucente, e este de que usamos tem a cor turbida e he çujo ?

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  1. Esta palavra falta na edição de Goa, mas sem ella a resposta seria inintelligivel.


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ORTA

Haveis de saber que de duas maneiras vem ter á India, scilicet, huma limpa e crára, e outra turbida e çuja, a qual alimpam os Baneanes primeiro que a comam : e a limpa tem a cor como latam muito luzio, e esta vem ter ao Guzarate, e dizem os Guzarates que vem de Chitor e do Patane e Dely ; e a outra goma vem do Estreito e de Ormuz ; e a lucida é de mais preço e a outra de menos ; e os mercadores onde achão a lucida, que he sua, não comprão a outra que se gasta em gente mesquinha, em comeres e mézinhas ; alguns a comem com o pão, a que chamão apas,


RUANO

O cheiro he todo hum ?


ORTA

O da que aprovão qua por milhor, que he a que vem ao Guzarate, que he mais luzente, tem o cheiro mais forte ; e a que vem de Ormuz nam he tam forte ; mas, a meus narizes, ambas cheiram muito mal, e peor que todas, a que tem por milhor, que he a luzente. E quando perguntão a alguns Baneanes qual cheira milhor, dizem que a que vem do Guzarate, por ter o cheiro pior e mais forte ; e isto deve acontecer, porque o tem em o custume ; que a muytas pessoas cheiram mal o estoraque liquido, e a algalia, por seu forte cheiro, e geralmente cheiram muito bem ; e a mim não me cheira alguma destas gomas a porros, e algum tanto me cheira á nossa mirra. E esta foy a causa porque a dividio Avicena em fetida e cheirosa : porque diziam que a fetida cheirava a porros, o qual nam he assi ; porque se considerarmos a maneira de falar dos antigos, acharemos não se chamar huma cousa odorifera por cheirar bem, senão por ter o cheiro forte : e assi chamão ao calamo aromatico, o qual, a juizo de muitos, se podia milhor chamar calamo fetido, pois a myrra também cheira mal, e o aloes pior, e o espique muito mais ; porque já purguey muitas pessoas que não queriam tomar o ruibarbo por o espique que levava.


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RUANO

Não me parece mal isso, mas milhor será que seja assa fetida esta de que usamos, e a cheirosa o benjuy ; pois não me dais capitulo de benjuy.


ORTA

Se he mézinha ou simple novamente achado no nosso uso, porque lhe hemos de dar nome antiguo ?


RUANO

Dirvoloey : porque mais razam he, que a raiz do arvore de benjuy seja boa pera temperar os comeres, e assa fetida não traz razam que seja boa ; e se aos Baneanes lhe sabe bem he porque são acustumados a comer hortaliças e outros comeres não saborosos, como os come a gente da nossa Europa. E, segundo diz Antonio Musa, os que nestas partes navegam e vão buscar o benjuy dizem, descrevendo o arvore, ser conforme á descriçam do arvore de laserpicium ; mais dizem que os da mesma terra, constrangidos da verdade, chamam á tal goma laserpicium.


ORTA

Nam sey qual foy o espanhol tam desvergonhado, que dixesse a Antonio Musa em Ferrara tam grande mentira, e como vos direy, falando do benjuy, o arvore delle he muito diferente do arvore que escrevem da assa fetida ; e o benjuy nam se sabe avelo senão em Çamatra e em Siam, e em todas estas terras não se chama senam cominhan e nam laserpicium ; o qual benjuy não o ha na Armenia, nem em Siria, nem em Africa, nem em Cirene, pois acerca dos moradores dessas terras não ha memoria delle : e a principal parte pera onde se gasta o benjuy, que vem a estas partes, he pera a Arabia, e isto digo, não negando gastarse tambem pera todas as outras partes ; porque tambem se gasta pera os reinos Dely, e do Mandou e Chitor ; porque os Guzarates e os Decanins, que o comprão de nós, dizem que tem saída pera essas partes ; posto que, como dixe, não he muita quantidade : logo mal dixe o vosso Musa que o ha em Africa


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e Arménia e Judea, e em Siria, pois de todas essas partes o vem qua buscar ; e o levão, podendo levar mercadoria de mais proveito, se lá o houvesse (5).


RUANO

Peçovos muito que vos nam agasteis com vos perguntar. Ruelio, homem assaz douto e digno de muito louvor, que trasladou o Dioscorides, diz, no seu livro da natureza das plantas[1], que em França nasce huma raiz grossa e grande, e de fóra negra e de dentro branca, e vay a pintando nas folhas e feiçam, e diz, que, assi a raiz, como a semente, como a lagrima, cheira com grande suavidade, e, por ser muito provada mézinha, lhe poseram nomes muito soberbos, scilicet, raiz imperatoria, raiz angelica, raiz do Espirito Santo ; e diz aproveitar pera muitas cousas, sendo quente sequa no terceiro gráo ; he unica contra o veneno, e preserva da contagiam e apegamento de peste ; e diz que, se a tomam e trazem na boca quantidade de hum grão de comer, e no inverno com vinho, e no verão com agoa rosada, não sentiram peste o dia que a tomarem, deitando o veneno per orina e per suor ; e assi diz valer contra as fascinações e contra muitas enfermidades que leixo de dizer, e diz ser aquelle laserpicium gallico, o que os medicos veterinarios (a que chamamos alveitares) disseram ; e diz que o çumo ou lagrima cheira a benjuy, e que os doctos são d'este parecer, scilicet, que he benjuy ; e que este he o opus cirinaico ou çumo cirinaico, que pario Judéa e deitou em França ; e assi diz que se havia de chamar ben judeo e que está corruto o vocábulo e chamam o benjuy (6).


ORTA

Largamente louvastes esta raiz ; e porém o arvore he muito diferente do benjuy como vereis quando nelle falarmos ;

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  1. Ruel. li. stirpium (nota do auctor). Isto é no De natura stirpium libri tres.


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porque estoutro do benjuy he grande arvore e muito diferente, e tambem o da assa fetida sei não ser tam grande, e fôra razam que se he laserpicium cirinaicum, que ficára lá algum, e que se achára algum em Judéa, maiormente que perguntey já a homens desta terra, mercadores boticairos, e nenhum me dixe aver tal simples em memoria de homens e da região ; e quanto mais que o Ruelio o louva, dizendo que tomado a jejum, apaga e abaixa todos os estimolos da carne ; e de toda a assa fetida se escreve que não leixa o membro estar baixo ; e mais Mateolo Senense diz que teve essa opinião, e que depois, constrangido da verdade, tem a contraira : e portanto não sejais tam affeiçoado aos Gregos que avorreçais aos Arabios onde bem fallarem.


RUANO

Assi o farey, e porque vejais que o faço assi, chamarlheey imgu e não laserpicium, e darmeis licença vindo ao caso, pera falar nos Genosophistas que dixestes, e nos custumes desta terra ; e agora veremos que cousa he anil, porque ó acho qua no meu a b c.


ORTA

Anil nam he simple medecinal, senam mercadoria, e per isso nam ha que falar nelle. E por vos tirar de cuidados, sabei que o anil he chamado assi dos Arabios e Turcos e de todas as lingoas, e somente o Guzarate, que he onde se faz, o chama gali, e porém já agora o chama nil. He herva que se semea e parece com a que nós chamamos mangiriquam ; e assi a colhem e põem a sequar per tempo, e molhada a pisam com páos, e des que he bem pisada a ajuntam e põem a enxugar per dias, e quando a enxugam ou está enxuta, parece de cor verde, e quanto mais se vay enxugando parece de cor azul crara, e depois escura, até que venha ser o mais fino escuro que pode ser : e quanto he mais puro e limpo da terra he milhor, e a prova mais certa he queimado com huma candea, e não hade fiquar com arêa, senão com huma farinha muito delgada ; e outros o lanção em agoa, e, se nada, temse por bom ; de modo que ha de


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ser leve e de boa cor. E porque he muito grave cousa hum filosofo estar mais nisto, será bem que comamos, e lexemos o anil aos contratadores (7).


RUANO

Si : mas primeiro me direis que fruta he aquella do tamanho de huma noz que tam bem cheira ?

ORTA

Nam he fruta de que se uze cm mézinha, mas he boa pera temperar os comeres com azedo, fazendoos mais apetitosos : em madura cheira bem, e com ser madura retem em si o azedo mais apetitoso, chamamse ambares (8), e tem huma armadura cartilaginosa, e é amarella quando madura, e quando o não he a sua cor he verde craro (9).


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Nota (1)

Depois veremos de que planta ou plantas Orta falla n'este Coloquio ; mas primeiro necessitamos fixar-lhe a geographia.

O seu « Coraçone » identifica-se facilmente com a provincia persa do Khorásán, não só pela semelhança do nome, e pela situação em que o colloca, como também porque uma explicação quasi contemporanea define este ponto de um modo explicito. Pedro Teixeira, um dos portuguezes d'aquelles tempos que melhor conheceram a Persia, diz textualmente : Karason. Llaman-la comunmente nuestros portogueses, Corason, es atra provincia de las sugetas al reyno de Persia... (Relaciones, 38o).

Este « Coraçone » tocava no « reyno Dely », isto é na India ; e na região de « Chiruam ». Sobre ou a respeito de Chiruam, fez Scaligero, nas suas notas ao livro de Orta (Exotic., 244), uma confusão terrivel, querendo identifical-o com a cidade africana de Kiruan, ou antes Cairawán. Perdoe-nos o eruditissimo commentador, mas o erro de geographia seria demasiado grosseiro para Orta, que seguramente distinguia a cidade da Asia da da Africa. Chiruam, ou Schirwán, شروان, ficava junto de Derbend, a conhecida cidade das margens occidentaes do mar Caspio ; e este nome estendia-se a toda a região vizinha, ao lado do Daghestan, á qual Pedro Teixeira chama mesmo reyno de Xy-


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ruam (Cf. C Barbier de Meynard, Dict. géogr. de la Perse, 349, Paris, 1861 ; Teixeira, Relaciones, 361).

Vê-se, pois, que o nosso Orta, como de resto outros escriptores do tempo, não chamava unicamente « Coraçone » ao Khorásán ; abrangia sob esta designação, um tanto vaga, uma grande região, que ia da India até ao Caucaso, incluindo o Beluchistan, Afghanistan, parte do Turkestan meridional, o Khorásán proprio e toda a Persia septentrional. Pela banda do oriente e do norte, o seu Coraçone chegava até ao Amu-Daria, ou Oxus, para alem do qual ficava o « Uzbeque » — como veremos nas notas seguintes.

As mercadorias d'esta região vinham á India, ou por via de Hormuz, como o nosso escriptor affirma correctamente, ou pelo norte, pelos caminhos de Kandahar e do Cabul. Por isso elle diz muitas vezes, que se encontravam no reino de Dehli.


Nota (2)

A Glycyrrhiza chama-se em arábico sus ou çus, سوس ; e o seu nome portuguez, alcaçuz, parece vir de irq çus, ou arq çus, ةرق سوس, que significa raiz de çus, e se transformou por euphonia em alcaçuz ; assim como o nome hespanhol da mesma planta, orozuz, vem do plural, ةروق سوس, que significa raizes de çus. Rob, رب, quer effectivamente dizer « sumo feito basto », e robaçuz é o rob de çus, رب السوس ; somente Orta engana-se em dizer que está corrompido o nome, e devia ser robalçuz, pois o l do artigo se funde correctamente no s solar do nome (Cf. Dozy, Glossaire, palavras Orozuz, Rabazuz, etc ; e Sousa, Vestigios da lingua arabica, palavra alcaçus).

Mas de tudo isto não resulta de um modo bem claro que se não deva dizer assa dulcis.


Nota (3)

Avicenna nasceu, ou pelo menos creou-se e educou-se em Bokhára ; e foi depois « goazil », isto é, wazir ou vizir de um principe independente do Hamadan, e mais tarde em Ispahan. As noticias de Orta sobre a sua vida são substancialmente correctas, e não carecem de explicações.

O que requer alguns momentos de exame é a situação ou collocação de Bokhára no « Uzbeque » ; tanto mais que a versão de Clusius n'este ponto não é muito fiel, e elle suscitou alguns reparos da parte de Scaligero (Exotic., 152 e 244).


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Bokhára, como o resto da Transoxiana, como outras regiões da tão perturbada Asia, pertenceu successivamente a diversos senhores. Fez algum tempo parte do Khanato de Chagátai, uma das grandes divisões em que se fraccionou o enorme império de Chengíz-Khan ; mas, pelos começos do século XVI, occuparam aquella cidade os tartaros Uzbeks, antigamente habitantes do Khanato de Kipchák, e que derivavam o seu nome do de um dos seus Khans, o primeiro que professou o islamismo, Mahommed Uzbek. Ali se conservaram depois durante todo o seculo, com vicissitudes de boa e má fortuna, e interrupções mais ou menos longas. Temos a este respeito uma informação muito interessante para o nosso caso, por ser perfeitamente contemporanea — refere-se ao anno de 1550. É a relação de viagem de um certo mercador persa, Hadj Mohammed, feita por este verbalmente a Ramusio, que a incluiu no seu livro. Fallando das regiões de Samarkanda, elle diz que os Iescilbas do barrete verde, tartari musulmani (os Uzbeks), occupavam aquellas terras, e tinham grandes guerras com os Soffiani do barrete vermelho (os subditos do Súfí ou Scháh da Persia)[1] Os Iescilbas possuiam varias cidades, 1'una Bochara e 1'altra Samarcand. No fim do seculo, Pedro Teixeira exprime-se d'este modo : Uzbek és grandíssima provincia... ; e enumera as suas cidades principaes, Balk, Samarcand, Damarkand e Bokara. Vê-se, pois, que o nosso Orta, escrevendo em 1560 proximamente, é correcto em collocar Bokhára no « Uzbeque » (Cf. Ramusio, Delle navigationi, II, 16 v° ; Teixeira, Relaciones, 383 ; e para a historia completa dos Uzbeks e de Bokhára, William Erskine, Hist. of Báber and Humáyun, I. 26 et seqq., London, 1854).

Deve ainda notar-se, que Orta se não enganava em dizer que a « Persia he pequena região », se se considerar a Persia propriamente dita, isto é, a provincia de Fars ou Farsistán.

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  1. O barrete vermelho era o famoso Kazalbásch dos persas schiitas. Foi bem conhecido dos portuguezes ; Duarte Barbosa conta como o grande Ismael adoptou esta « devisa » ; e Affonso de Albuquerque, quando escreve ao poderoso scháh da Persia, chama-lhe : Rei das carapuças Roxas.


Nota (4)

Receio muito, que o nosso Orta fizesse no seu espirito uma grave confusão, posto que isto não resulte bem claramente das suas palavras.

É relativamente exacto quando falla do garb, o poente, de que procedeu o nosso nome do Algarve. E também exacto quando falla dos « Magaraby », os habitantes do Maghreb, ou Maghrib, que — segundo o define El-Beckri — abrangia a Africa septentrional a partir da grande


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Syrta, e a Hespanha musulmana (Cf. a versão de Abu Obeid el-Beckri por De Slane, no Journ. Asiatique, 5me série, vol. XII (1858), 412 et seqq.).

Ainda é exacto quando falla das differenças que podiam existir entre o arabico puro da Arabia, Syria, Mesopotamia e outras regiões vizinhas, e o arabico do Occidente, ou do Maghreb ; posto que essas differenças, pelo que diz respeito á lingua escripta e litteraria, fossem pequenas (Cf. Renan, Hist. des langues sémitiques, 409 et seqq.).

Quando, porém, insiste em que as obras « de Avicenna, e Galeno, e dos filosofos gregos, e as do falso profeta erao escriptas em lingua da Syria », esta phrase deixa-me suspeitar, que elle não distinguia claramente duas cousas bem diversas — o syriaco e o arabico da Syria : o syriaco, lingua já quasi morta no seu tempo, em que haviam sido feitas as primeiras versões dos auctores gregos ; e o arabico, usado na Syria como em outras partes, e em que foram escriptos o Qanum e o Qoran.


Nota (5)

Parece-me preferivel grupar em uma só nota, forçosamente um pouco extensa, o que temos a dizer sobre as interessantes noticias, que Orta dá em todo o Coloquio a respeito da asa-foetida.

Vejamos em primeiro logar os nomes vulgares:

  • « Imgu » e « Imgara » são os nomes indianos citados, que correspondem ao sanskritico hingu, e aos nomes modernos hing e hingra de variedades da droga.
  • « Altiht » nome arábico da droga; isto é, حلتيت, hiltit.
  • « Anjuden » ou « Angeidan » nome arábico da planta de que manava; isto é انجدان, andjudan.
  • « Almharut » outro nome da planta ; de محروث, mahrúth, applicado especialmente á raiz.

Como se vê, tudo isto é exacto ; e, á parte variantes de orthographia, tudo isto é fácil de identificar com o que encontramos nos livros antigos e modernos (Cf. Avicenna, na Interpretatio do Bellunense ; Sprengel, Dioscorides, II, 528 ; Ainslie, Mat. Indica, I, 20; Pharmacographia, 284; Dymock, Mat. med., 389).

Da planta sabia pouco ; nunca a viu, e tinham-lhe apenas dito, que era uma arvore pequena, tendo folhas parecidas com as da « avellaneira ». Comquanto ainda hoje existam alguns pontos duvidosos, parece averiguado, que a droga mais fina, chamada hing, procede da Ferula alliacea, Boiss., que habita os terrenos aridos do Khorásán ; emquanto a droga inferior e commum do commercio se extrahe da Ferula Narthex, Boiss. (Narthex Asa-foetida, Falconer), encontrada ao norte do Kachmira por este botanico, e da Ferula Asa-fœtida, Linn. (Scorodosma fœti-


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dum, Bunge)[1] dos desertos arenosos a nascente e poente do Aral, das terras ao sul de Samarkanda, do territorio de Herat, e de outros pontos da Persia e Afghanistan (Cf. Pharmacographia, 280 ; Dymock, Mat. med., 381 a 385).

Todas estas plantas são grandes Umbelliferæ herbaceas, e não são arvores, nem têem folhas de « avellaneira ». Orta estava, pois, mal informado n'este ponto. Quanto ao modo de obter a gomma-resina, sabia apenas que davam « cutiladas » na arvore para a extrahir, o que é exacto. Kämpfer, o primeiro que descreveu methodicamente o processo de extracção (1687), refere-se ao modo por que na Persia e Afghanistan cortam finas secções na parte superior da raiz para provocar a saída do sueco leitoso. Muito depois (1857) H. Bellew, que assistiu á colheita da droga na região de Kandahar, falla igualmente nas incisões profundas feitas na raiz. E recentemente o sr. Dymock, a quem devemos a ultima e mais completa noticia sobre as origens da asa-fœtida, confirma as indicações de Kämpfer e de Bellew sobre este ponto[2].

Orta sabia igualmente que a guardavam em « coiros de boy », misturando-a com farinha de trigo. H. Bellew confirma a ultima indicação, dizendo que a adulteram nos sitios de producção, lançando-lhe gesso, ou farinha, flour. E Dymock diz, que a trazem para a India em coiros, packed in a skin, descrevendo mais detidamente o que diz respeito á região de Kandahar, sewn up in goat skins, forming small oblong bales, with the hair outside — uma especie de odres. Como se vê, o nosso escriptor continua a ser exacto.

Onde, porém, Orta é particularmente interessante, é n'aquillo que pôde observar directamente. No nosso seculo, o zeloso pharmacologista Guibourt chamou a attenção para uma amostra de asa-fœtida, vinda da India, muito pura, de cheiro forte e repugnantissimo, e da cor de miel foncé. Segundo os auctores da Pharmacographia, esta variedade da droga forma : a dark brown, translucent, brittle mass, of extremely alliaceous odour. E recentemente, o sr. Dymock diz, que a ella se dá o nome especial de hing, que é produzida pela Ferula alliacea e vale perto do triplo da ordinaria, acrescentando, que Guibourt foi o primeiro europeu que a notou. Mas a verdade é, que ella vem claramente apontada pelo nosso escriptor. Aquella asa-fœtida « limpa e crara »,

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  1. Os géneros Narthex e Scorodosma estáo incluidos no género Ferula (Bentham e Hooker, Genera plantarum, I, 918). A identidade da planta de Kämpfer [Ferula Asa-fœtida Linn.) com a de Bunge foi posta em duvida, mas é admittida por Boissier (Flora Orientalis, II, 994).
  2. É interessante a noticia do portuguez Teixeira, posterior a Orta, mas muito anterior a Kämpfer. Diz elle : coge-se la mas d'ella en fin del otoño, por que en fin del estio acochillan las plantas y comienca a distillar. Refere-se a Duzgun no Laristan, um dos sitios classicos da producção d'esta droga (Relaciones, 92 e 93).


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tendo a cor como « latam muito luzio », tendo o « cheiro mais forte », e sendo de « mais preço », era evidentemente o hing da Ferula alliacea (Cf. Guibourt, Hist. nat. des drogues, III, 241 ; Pharmacographia, 284 ; Dymock, 1. c, 381, 382).

Vejâmos ainda as procedencias. Grande parte da droga, segundo Orta, vinha de « Ormuz » ; isto era verdade no seu tempo, e ainda é verdade no nosso, se não propriamente de Hormuz, hoje decadente, ao menos do Golfo Pérsico em geral : much is shipped in the Persian Gulf for Bombay (Pharmac., 285). Outra vinha ter ao Guzerate, e diziam os guzerates, que procedia de Chitor e do Patane (Afghanistan ?) e Dely. Estas indicações, tomadas á lettra são inexactas, porque, nem no reino de Dehli, nem em Mandou ou Chitor havia asa-fœtida ; mas Orta quer referir-se á que entrava na India por terra e pela fronteira do noroeste. N'este sentido a affirmação deve ser exacta, e ainda hoje alguma asa-fœtida — computada no anno de 1864 em valor superior a 2:000 £ — continua a vir á India pela via de Kandahar e desfiladeiros de Bolán até Shikarpúr, emquanto outra vem pelo Cabul a Peshawár (Cf Davies, Report on the trade of central Asia, 18 e 21).

Se prescindirmos, pois, de algumas inexactidões, perfeitamente explicáveis pelos escassos meios de informação de que o nosso auctor dispunha em relação a regiões, que nunca visitou e eram pouco conhecidas, vemos que a sua noticia sobre as origens da asa-fœtida é bastante completa e sobretudo notavelmente exacta.

Dos usos, bem conhecidos, da droga pouco ha a notar. A asa-fœtida figura ainda hoje em todas as Pharmacopêas como um anti-spasmodico poderoso ; e na India foi tambem considerada aperitiva e aphrodisiaca. O que era novo para Garcia da Orta, era o seu emprego constante como condimento ; e naturalmente este tempero mal cheiroso repugnava aos seus hábitos de europeu. Comtudo elle confessa que uns certos bredos, temperados com asa-fœtida, lhe não cheiraram e mesmo lhe não souberam muito mal.

Passaremos tambem de leve sobre a interminável questão da identidade ou não identidade da asa-fœtida com o laserpitium, recordando apenas o sufficiente para elucidar o que diz o nosso escriptor. O celebre σιλφιον dos gregos, o laserpitium dos latinos, era uma planta africana, que habitava particularmente na peninsula Cyrenaica. Julgaram alguns tel-a encontrado ali modernamente ; mas pesquizas cuidadosamente feitas, sobretudo pelo sr. Julio Daveau, demonstraram, que o supposto silphion era simplesmente a vulgar Thapsia garganica, Linn., uma planta medicinal, mas de qualidades diversas da antiga, a qual se deve julgar extincta. Como este silphion ou laserpitium africano fosse raro já nos tempos de Plinio e de Dioscorides, empregava-se em seu logar uma droga de inferior qualidade, á qual se dava o mesmo nome, e que vinha do Oriente, da Syria, da Persia e da Média. Será difficil decidir com


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segurança se aquelle laserpitium asiatico era a asa-fœtida ; mas esta opinião não parece inacceitavel, antes muito plausivel. Orta, um pouco confusamente na verdade, inclina-se a este modo de ver ; e repelle, com toda a rasão, qualquer approximação entre o laserpitium e o beijoim, do qual trataremos no Coloquio respectivo. (Cf. Hérink, La vérité sur le prétendu Silphion de la Cyrénaique ; Sprengel, Dioscorides, 11, 527 ; Guibourt, Hist. des drogues, III, 238 ; Jonathan Pereira, Elements of mat. medica, vol. II, part. II, p. 174, 4th edition, London, 1857).


Nota (6)

Confundem-se aqui duas plantas, ambas da mesma familia das Umbelliferæ, e que ambas tiveram um momento de celebridade. Uma é a Imperatoria Ostruthium, Linn. [1] ; a outra, a cuja raiz se deu o nome de raiz angelica, e de raiz do espirito santo, é a Archangelica officinalis, Hoff. et Koch (Angelica archangelica, Linn.), que ainda figura nas Pharmacopêas, mas é pouco empregada.

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  1. Hoje incluida no genero Peucedanum.


Nota (7)

Do Anil falla o nosso Orta brevemente e com um certo desprendimento, parecendo-lhe materia mais propria de « contratadores », que de « filosofos ». Indica, porém, o nome moderno na India, « Nil », o qual vem do sanskritico nīlī, que se deriva de नील nīla, azul. E descreve succintamente a sua fabricação, que já seculos antes observara e descrevera Marco Polo (Cf. Yule, Marco Polo, II, 363 e 370).

As maneiras de apreciar as qualidades do anil, a que se refere o nosso escriptor, eram bem conhecidas no Oriente ; e ao melhor e mais leve davam os portuguezes o nome de anil nadador. Duarte Barbosa diz, que o « Anil pesado, que tenha areia » valia de 18 a 20 fanões a farazola [1], emquanto o « Anil nadador muito bom » valia 30 fanões (Cf. Duarte Barbosa, Livro, 385).

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  1. A farazola variava segundo as localidades entre 8 e 11 kilos proximamente, chegando algumas a 14 kilos ; e o fanão valia de 20 a 27 reaes, havendo alguns mais baixos. Farazola, ou faraçola ou farasola era a fārsala arabica ; no Roteiro da viagem de Vasco da Gama vem escripta a palavra com menos alteração, farazalla e frazala. O fanão ou fanam era uma pequenina moeda, e o seu nome vinha do tamil panam, que significa dinheiro (Cf. as excellentes Tabellas, annexas ao Lyvro dos Pesos, nos Subsidios de Felner ; e tambem Yule e Burnell, Glossary, nas palavras Frazala, e Fanam).


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Nota (8)

Os «âmbares» são os fructos da Spondias mangifera, Willd., cujo nome hindi é ainda o mesmo, ambara (Piddington, Index, 83) ; e cujas drupas ovoides, e de caroço fibroso, correspondem perfeitamente á descripção de Orta.


Nota (9)

Os escriptores citados n'este Colloquio, e não mencionados nos anteriores, são : Sepulveda, o Fernando de Sepulveda, que escreveu o Manipulus medicinarum, e Guarinero, ou correctamente na nota Guainero, isto é, Antonio Guainero, auctor do Opus præclarum (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, 291 e 293).