Coloquio 57 (Garcia da Orta)

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Coloquio 56
Garcia da Orta, Coloquios dos simples, 1563
Coloquio 58


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COLOQUIO QUINQUAGESIMO SETIMO


DA ZEDOARIA E ZERUMBET

Noms acceptés : Curcuma aromatica, Curcuma picta


INTERLOCUTORES
RUANO, ORTA


RUANO

Bem sabeis quanta duvida ha em o que se chama zedoaria, e o que se chama zerumbet ; porque Avicena faz dous capitulos, e Serapio hum só de zerumbet, e Rasis faz hum capitulo de ambos : decraraime isto, dizendo os nomes e se o usam a gente da terra.

[Vous connaissez bien tous les doutes qui existent sur ce que l'on appelle zedoaria et zerumbet ; Avicenne en a fait deux chapitres, et Sérapion un seul sur le zerumbet, alors que Rhazès a fait un chapitre sur les deux.]

ORTA

A mesma duvida, que vós tendes, tive eu muyto tempo ; e asentei que, por zedoaria ser mais famosa, era o que chamamos zerumba, drogua usada pera Ormuz e dahi levada pera a Turquia e Veneza ; e que o zerumbet era o que chamamos açafram da terra, que na feiçam sua se parece com a ruiva seca nossa, de que ja vos falei acima no croco indiano. E depois que muyto cuidei nisso e o enqueri, soube que estava enguanado, por os efeitos e obras diversas que o açafram da terra faz das que escrevem da zedoaria e zerumbet, asi chamade de nós ; porque da zedoaria faz capitulo Avicena[1] e de zerumbet ; e isto que chamamos zedoaria chama Avicena geiduar, e outro nome lhe não sei ; porque o não ha senam nas terras confins á China. E este geiduar he huma mézinha de muyto preço, e não achada senão nas mãos dos que os Gentios chamam jogues, ou outros a que os Mouros chamam calandares; e todos estes sam peregrinos, que vivem mendicando e peregrinando, e visitando as suas casas de idolatrias ; e destes vos falei já, dos quais ham

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  1. Avicena, Lib. 2, cap. 742 (nota do auctor). Na edição de Rinio, cap. 745 De zedoaria, 747 De zerumbet, 754 De zeduar.


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os reis e grandes pessoas este geiduar, a que nós corrutamente chamamos zedoaria.

RUANO

E como soubestes isto, que tarn ousadamente falaes ?

ORTA

Os fizicos do Nizamoxa mo dixeram : querendoa dar a hum homem no arraial do Nizamoxa contra a mordedura de huma bicha, a mandaram pedir ao rey ; aos quaes eu dixe, que os buticairos a tinham, e lha mostrei ; elles responderam, que isso que lhe eu mostrava era zerumba, e não o geiduar ; e dandoa contra a mordedura da bicha, se achou o trabalhador bem, e lhe tornou o pulso, e se lhe esforçou a virtude.

RUANO

E de que feiçam era essa zedoaria ?

ORTA

Tamanha como huma bolota, e casi dessa feiçam, e a cor era lucida : pedi a elrey hum arratel dessa mézinha ; e disseme que não me podia dar tanta, e deume hum pedaço que pesaria mea onça ; a qual mostrei aos buticairos de Chaul e de Goa, e todos me diseram que não conheciam aquella mézinha, e que não usariam della. E esta mandei a Portugal com huma pedra armenia, e tudo se perdeo, e a náo em que hia, Deos seja louvado. E despois achei na mão de hum jogue huma pouca, e nam lha comprei, porque a nao conhecia bem. E se tivera algum fizico ahi, eu lha comprara, e vola mostrara aguora.

RUANO

Aproveita pera outras causas este geiduar ?

ORTA

Diseme o Mula Ucem (e este era um fizico letrado, que eu conversei, estando em Juner curando os filhos do Nizamoxa) e me disse que aproveitava pera 36 cousas ; e elle


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me disse muytas dellas, e eu 1ha vi aplicar em hum giolho, que estava com dor hum mercador. E ao menos podeis crer que he mézinha que se estima em muyto, e o principal he contra a peçonha.

RUANO

Pois Aviçena nam faz tanto caso della.

ORTA

Avicena não a conheceo, e foy muyto duvidoso nesta mézinha ; porque nas cousas de duvida faz Avicena dous capitulos, e assi fez nesta porque no capitulo 752 diz : geiduar quid est ? E diz que estima que será algeiduar ; e Dioscorides nunqua falou nisto[1]. E por aqui vereis que Avicena tinha nesta mézinha duvida. E o Belunensis, na exposiçam dos nomes arabios, parece que cheirou isto ; porque faz mençam de zeduar e de zedoaria, e de zerumbat. E por aqui sabereis que he zedoaria nome corruto, e geiduar verdadeiro. E aguora vos direi o que he zerumbet, e vós ao cabo vireis com vossas contradições, como acustumaes ; mas eu ei de ficar em pé, porque a verdade tem pés, e anda e nunqua morre. E diguo que o zerumbet se chama dos Arabios e Persas e Turcos zerumba, e dos Guzarates e Decanins e Canarins cachorá, e dos Malavres çua[2]. A maior cantidade della he no Malavar, scilicet, em Calecut e Cananor ; e nasce no mato, e, se a plantam ou semeam, nasce em muytas partes, e em todo o cabo. Chamamlhe muytos gengivre do mato, e tem rezam ; porque na folha he semelhante ao gengivre, senão que a folha he mais larga da zerumba, e mais aberta, e a raiz da zerumba he mais grande ; e des que he colhida a secam em talhadas, e a levam a Ormuz

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  1. Aliás, cap. 754. - O curtissimo capitulo de Avicena é textualmente o seguinte : Zeduar quid est ? Inquit Dios. Est algieduar. i. secundum quod existimo.
  2. Sic na edição de Goa, mas deve ler-se cua ; e as cedilhas são postas em todo o livro com uma grande irregularidade.


NOTA (1)

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Este ultimo Coloquio da serie alphabetica suscita algumas duvidas e difficuldades. Para as expor com a possivel clareza, necessitâmos dizer primeiro o que hoje se julga geralmente ser a zedoaria e o zerumbet, seguindo principalmente os excellentes capitulos de Dymock sobre o assumpto.

A zedoaria amarella procede da Curcuma aromatica, Salisb. (Curcuma Zedoaria, Roxb.), uma planta da familia das Scitamineæ.

Este rhizoma é o vanaharidra dos livros sanskritos, e parece tambem ser o جدوار, djeduar ou geiduar dos arabes e de Avicena. É considerado medicinal pelos hindus, e nomeadamente util em cases de envenenamentos, mordeduras de cobras e outros. D'aqui lhe veio um dos nomes sanskriticos, निविसा, nirvishā, e d'aqui sem duvida procedia tambem aquella idéa de Avicenna, de ser melhor o que crescia junte ao napello, e enfraquecia o napello. A Curcuma aromatica é espontanea no Concan,


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e tambem no Malabar, d'onde hoje se abastece em grande parte o mercado de Bombaim. A droga parece ser bastante commum.

A zedoaria cinzenta procede da Curcuma Zedoaria, Roscoe (Curcuma Zerumbet, Roxb.), do mesmo genero e familia que a precedente. (Nom accepté : Curcuma picta).

Esta droga é o زرمباد, zerumbad (nas versões zerumbet) de Avicenna, Serapio, e em geral dos arabes. É chamada kachúra pelas hindus, do sanscrito करचूरा karchūrā ; e é igualmente a droga de que Rhede falla sob o nome geral de kua, dado tambem no Malabar a mais especies do mesmo genero. A planta parece ser bastante vulgar na India meridional, e é commum nas hortas de Bombaim, onde Dymock julga teria sido introduzida pelos portuguezes. A droga encontra-se com frequencia nos bazares, e tem algumas applicações medicinaes, sendo tambem usada como condimento ou especiaria. Dimock é de opinião, que a zedoaria longa e a zedoaria redonda do commercio procedem ambas d'esta especie, e são simples fórmas do mesmo rhizoma. Esta zedoaria vinha desde tempos antigos para a Europa, onde foram conhecidas as suas variedades longa e redonda.

Isto posto, vejamos o que diz Orta. É claro que elle conheceu perfeitamente o rhizoma da Curcuma Zedoaria, de que falla sob o nome de zerumbet. Dá-nos todos os nomes vulgares, que citamos acima : « zerumba » entre os arabes, « cachorá » entre os hindus, « cua » no Malabar. Conheceu as duas formas redonda e longa ; e está perfeitamente ao facto do commercio que para a Europa se fazia n'esta droga.

Nao é igualmente claro que elle se refira ao rhizoma da Curcuma aromatica, pelo nome de zedoaria e geiduar. Por um lado, é favoravel a esta identificacão o facto, que elle cita, de o darem para a « mordedura de uma bicha » ; mas, por outro, a sua descripção concorda mal com aquelle rhizoma, que nao é « lucido », nem tem o tamanho e a feição de uma bolota. E não é provavel, que nem elle, nem os boticarios de Chaul e de Goa, conhecessem uma droga, que a final nao é rara na India. O que parece ser é que Orta confundisse algumas cousas que lhe disseram do verdadeiro geiduar, procedente da Curcuma aromatica, com uma droga rara da China, que viu em poder do Nizam Scháh. Esta droga poderia ser algum rhizoma ou tuberculo de outra Curcuma, vindo d'aquellas regiões. Uns tuberculos de uma Curcuma, descriptos e figurados par Hanbury nas suas Notes on chinese Materia Medica, procedentes da China, onde são chamados yuh-kin, corresponderiam approximadamente á descripção de Orta. Nao é possivel affirmar, que esta fosse a sua zedoaria, mas seria alguma cousa similhante.

(Cf. Dymock, Mat. med., 769, 771 ; Ainslie, Mat. Ind., 1, 490, Hanbury, Science papers, 254.)