Coloquio 20 (Garcia da Orta)
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- Nom accepté : datura, Datura metel
- Nom accepté : dorião, Durio zibethinus
SERVA Á minha senhora deu datura a beber huma negra da casa ; e tomoulhe as chaves, e as joyas que tinha ao pescoço, as que tinha na caixa, e fogio com outro negro ; mercê me fará em a ir socorrer.
ORTA
Como sabeis isso?
SERVA
Porque já tomaram a negra no Passo-Seco e acháramlhe ametade das joyas, e ella confesa que deu outra metade a seu amigo, que vai por Agaçaim ; pôde ser que sej também já tomado.
ORTA
Vamos vela, que he huma molher solteira mestiça (1) ; e folgareis de a ver, porque a quem dam esta mézinha não falam cousa a preposito ; e sempre riem, e sam muito liberaes, porque quantas joyas lhe tomais, vos deixam tomar, e todo o negocio he rir e falar muito pouco, e nam a preposito : e a maneira que qua ha de roubar he deitandolhe esta mézinha no comer; porque os faz estar com este acidente vinte e quatro oras. Deos vos salve, senhora.
PAULA DE ANDRADE
Im, im, im.
ORTA
Nam aveis de responder alguma cousa, mas que he isso?
PAULA DE ANDRADE
Im, im, im.
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ORTA
Esfreguemlhe as pernas muyto rijo pera baixo, e atemlhas com huns cairos e os braços ; e lançemlhe hum cristel, que lhe agora escreverei, e hum vomitivo ; e, desque isso tomar, póde ser que lhe mande lançar algumas ventosas ; e daqui a duas oras, se nam se achar milhor, mandalaei sangrar da vea do artelho, ainda que nisto tenho alguma duvida por ser a materia venenosa.
RUANO
Eu a esta curaria, como quem está frenética, ou pera frenetica de sangue.
ORTA
O que qua eu uzo he fazerlhe grandes vómitos, pera evacuar o que comeo, juntamente com o que está no estomago ; e de verter [1], e vacuar com cristeis fortes, e ligaturas, e ventosas, e ás vezes sangria no artelho ; e com isto me acho bem, e nenhum me perigou, e todos saráram antes de vinte quatro oras. E a gente desta terra não tem isto por cousa perigosa, nem se tem por ruindade fazerse, senão quando se faz com máo fim : muytos o fazem por zombar de alguma pesoa. E eu vi dous homens, o mais moço delles era de 50 annos, a quem os filhos do Nizamoxa o deram, pera zombar delles, e hum era caçador, e outro era mestre de fazer frechas e arcos, e ambos curei, e ambos foram sãos, sem despois lhe sentir eu dano algum no cérebro ou meolo.
RUANO Déstelo já a algum voso negro ou negra ?
ORTA Nam, porque nam me conformei com minha conçiencia a fazelo.
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- ↑ Na edição de Goa está « de virtir », e o sentido é para mim muito duvidoso.
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RUANO
Mandaime buscar essa erva.
ORTA
No campo vola amostrarei, como cavalgarmos ; por agora sabei que he huma erva alta, e as folhas da feiçam de branca ursina ; e as folhas nam sam tam grandes, e sam agudas no cabo, fazendo ponta a modo de lança ; e ao redor da folha faz outras pontas da mesma maneira ; e he a folha posta em hum tallo grosso, e tem muytos nervos semeados pelo meo ; a frol, que naçe pellos ramos, he como rosmaninho na cor ; e he a mais redonda, e não tam feita como cubo : desta frol usam mais, ou da semente que nella se encerra ; o sabor das folhas dos tallos he casi ensipido, com muyta umidade, e he hum pouco amargozo : parece que cheira como rabam, digo como folha delle e ainda nam tam forte ; por onde eu creria que he fumosa esta erva, com alguma venonisidade [1]. Moça, leva esta receita ao boticairo, que faça isto muyto depressa ; e vós outras tende cuydado de me yr dar conta do que passa, e vamos comer (2).
RUANO
Falando com hum homem, que foy muyto tempo a Malaca, me dixe que a milhor fruta que avia no mundo era huma que chamavam doriões, e lembrovos que tenhamos alguma pratica sobre isso.
ORTA
Eu não a provei, e dos homens que a provaram e as outras frutas nossas, ouvi que sabem bem, e outros dizem o contrairo, scilicet, que nam sabem tam bem como serejas, ou melões pera o gosto ; antes me dizem que no principio
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- ↑ Toda a descripção da planta, ao lado de traços muito bem observados, contém palavras de difficil explicação ; como a herva ser fumosa, ou a flor não ser feita como um cubo.
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vos cheiram a cebolas podres, e desque os vindes a gostar, vos sabem muito bem, em tanta maneira, que dizem que hum mercador veio a Malaca, e que trazia huma náo carregada de mercadorias, e que vendeo a náo e ellas pera comer, em doriões somente. Isto contaram asi, não sei se he verdade, se mentira ; mas em Malaca ha muy boas frutas, como uvas e mangas, e as não estimão tanto como doriôes. E pera que nam gastemos o tempo muito nisto, vos direi como he o dorião em breves palavras ; pois nam he cousa de fisica, mais que dizerem os Malaios que he bom pera a festa de Venus.
RUANO
Gabaramme esta fruta tanto que me foi neceçario falarvos nella.
ORTA
He o dorião hum pomo do tamanho de hum melam, e tem huma casca per fora muyto grosa, e cercada de bicos pequeninos, a modo do que aqui em Goa chamamos jáca, do que ao diante vos farei mençam ; he verde per fora este pomo, e tem apartamentos de dentro, a modo de camarás, e em cada camará tem frutas separadas, na cor e no sabor como manjar branco ; e porém não languido, nem que se pegue muyto ás mãos, como o mesmo manjar branco ; mas o sabor he muyto gabado de todos, tirando alguns que dizem o que acima dixe ; e estas frutas sam do tamanho de hum ovo de galinha pequeno (as que estão no repartimento) ; algumas ha que não sam brancas, mas como amarelo craro. A frol delle he branca, e tira pouco a amarela ; a folha he de comprimento de meo palmo, aguda e saida, e he verde craro per fora, e verde escuro per dentro ; e tem dentro hum caroço como de pexego, e he redondo [1]. E hum fidalgo desta terra me dise que lhe lembrara ler em Plinio, escrito
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- ↑ Evidentemente o caroço não estava dentro da folha. É forçoso confessar, que tudo isto não é um modelo de estylo descriptivo.
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em toscano, nobiles doriones ; depois lhe roguey que me buscase isto pera o ver no latim, até o presente me diz que o nam acha. Se eu disto souber alguma cousa eu o escreverei (3).
Nota (1)
Paula de Andrade era « mestiça », provavelmente luso-indiana ; e era uma mulher solteira, isto é, levando uma vida livre e solta, que tal foi, por aquelles tempos, a significação habitual da palavra solteira. As riquezas accumuladas em Goa, e a reunião ali de muitos mercadores de diversas regiões, e de muitos portuguezes ociosos, haviam creado uma classe numerosa de solteiras, algumas d'ellas elegantes, possuindo joias valiosas, e rodeadas de escravas. Gaspar Corrêa, referindo-se a um período bastante anterior, diz-nos já o seguinte : « Erão todas as mulheres solteiras muyto ricas... e seu cabedal erão pannos branqos e de seda, e o mais era ouro em cadeas e manilhas ; porque havia mulher que hia á igreja e levava três e quatro escravas carregadas d'ouro ». O seu luxo chegou a ser tal, que o honesto e rigido vice-rei, D. Pedro Mascarenhas, tentou atalhal-o, prohibindo, que « nenhuma mulher publica andasse em palanquim, se não descoberta ». Vê-se, pois, que o nosso escriptor introduz nos seus diálogos uma figura typica da vida de Goa. Importa pouco saber se Paula de Andrade existiu, ou se Orta a inventou para as necessidades da sua exposição ; o que convém notar, é que o caso, se não é verdadeiro, é perfeitamente verosimil.
A negra, isto é, a escrava — porque a palavra negra se não applicava unicamente ás africanas — foge depois do roubo para a terra firme, e é apanhada no Passo Secco. Este Passo, assim chamado porque nas marés baixas a ria tinha ali pouca agua, ficava na extremidade oriental da ilha de Goa, no fim da estrada de Santa Luzia, logo adiante da ermida de S. Braz. Havia ali uma fortaleza, confiada a um capitão e um condestabre, tendo ás suas ordens cinco naiques e quarenta piães, que sem duvida detiveram a negra.
O amigo da negra, a quem ella confiara parte do roubo — ainda um traço perfeitamente natural — foge por Agaçaim. O Passo de Agaçaim ficava no sul, entre a ilha e as terras de Salcete ; e não havia ali guarda, por o rio ser « muito larguo e ruim desembarcaçáo ». Havia unicamente uma barca e um « tenadar ».
(Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, 191 ; Linschoten, Navig., na carta de Goa ; Tombo do Estado da India, 73 e 74).
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Nota (2)
Esta « datura » é a Datura alba, Nees von Es., ou antes a fórma de corollas roxas (da « cor do rosmaninho »), chamada D. fastuosa, e que não differe especificamente da primeira. Orta descreve-a correctamente, comparando as suas folhas com as da « branca ursina « (Acanthus), e notando a inserção da flor, que de feito se afasta um pouco das disposições mais habituaes.
Varias especies de Datura possuem propriedades toxicas energicas [1] ; mas, em doses convenientes, são applicadas pelos médicos hindus e mussulmanos no tratamento de varias doenças. O extractum daturæ e a tinctura daturæ, preparados com as sementes da D. alba ; e o emplastrum e cataplasma daturæ, preparados com as suas folhas, figuram mesmo na Pharmacopœia of India, o que prova que foram officialmente adoptados (Pharmac. of India, 175, India Office, 1868).
Mas o mais curioso e caracteristico uso da datura, é aquelle uso criminoso, a que Orta se refere, que todos na India conheciam e conhecem, e do qual fallaram Linschoten, Christovão da Costa, Pyrard de Laval e outros escriptores contemporâneos ou quasi contemporâneos de Garcia da Orta.
Os envenenamentos variavam em gravidade, desde os que tinham por fim causar a morte, até aos que unicamente constituiam uma « zombaria », ou graça, como no caso contado por Orta, e passado com os filhos do Nizam Schah [2]. Deve-se dizer, que a graça era pesada, e bem propria de principes orientaes. Mais habitualmente, porém, a datura foi empregada para obter a insensibilidade ou inconsciencia temporaria com um fim mais ou menos condemnavel. Tanto Linschoten, como Pyrard de Laval, se referem ao facto de as mulheres pouco escrupulosas de Goa recorrerem ao uso d'esta planta para adormecerem a vigilancia dos maridos ou dos protectores ; e nos casos de roubo, como no de Paula de Andrade, parece ter sido de uso frequentissimo.
Em tempos posteriores a Orta continuou esta pratica, da qual fallam Wight, Murray e muitos outros. Nos nossos dias a Datura foi ainda empregada regularmente por uma classe de Thugs ; e um dos auctores do Glossary, A. Coke Burnell, recorda o facto de ter julgado e condemnado muitos d'aquelles criminosos. Parece que o dr. Norman Chevers deu uma interessante noticia sobre aquelles dhaturías (os envenenado-
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- ↑ O alcalóide da Datura, a daturina, foi considerado como identico á atropina, e tendo portanto a formula C34 H23 Az O6. Parece, porém, ser muito menos energico.
- ↑ Por isso a herva teve entre os portuguezes de Goa o nome de burladora, como recorda Christovão da Costa.
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res profissionaes com a datura), no seu trabalho Medical jurisprudence of Bengal ; mas não pude consultar este trabalho, e nem mesmo posso encontrar nas minhas notas onde o vi citado.
Os envenenamentos com a datura deviam, pois, ser frequentes em Goa, e Orta, escrevendo a historia da sua clinica no Oriente, náo podia deixar de mencionar este accidente usual.
Nota (3)
O « dorião » é o fructo do Durio zibethinus, Linn., uma grande arvore pertencente á familia das Malvaceæ, tomada esta no seu sentido mais lato.
Orta nunca viu a planta, e nem mesmo pôde provar o fructo, que n'aquelles tempos de viagens demoradas não chegava em bom estado á India. Effectivamente o Durio zibethinus habita só nas terras mais chegadas ao equador, varias ilhas do archipelago Malayo, península de Malaca, e parte meridional da Indo-China. Pelas informações que lhe deram, consegue no emtanto descrever o fructo com uma certa exactidão, ainda que um pouco confusamente. É também exacto, mencionando as encontradas opiniões, correntes sobre o sabor do celebre fructo ; desde a opinião dos que o collocavam abaixo das fructas europêas, e lhe notavam um cheiro repugnante a cebolas podres, até ao caso do mercador que vendeu nau e fazendas só para comer duriões. Parece com effeito, que uma certa iniciação é necessaria para apreciar devidamente os duriões. Wallace conta, que ás primeiras tentativas em Malaca, o mau cheiro lhe causava uma repugnancia extrema ; mas depois, em Bornéo, se tornou um grande admirador do fructo ; e termina dizendo : « comer Duriões é uma sensação nova, e vale a pena ir ao Oriente para a experimentar » (Cf. Crawfurd, Dict. of the Indian Islands, 125 ; A. Russel Wallace, The Malay Archipelago, 74, London, 1883).