Coloquio 9 (Garcia da Orta)

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Coloquio 8
Garcia da Orta, Coloquios dos simples, 1563)
Coloquio 10


COLOQUIO NONO DO BENJUY


[103]

INTERLOCUTORES
RUANO, ORTA


RUANO

Falando em laserpicium me dixestes que assa odorata não era benjuy, como alguns doctos tiverão, e falaremos agora nelle, pois com tanta suavidade nos deleita ; porque a mim milhor me cheira este que o de Portugal ; e havia de ser o contrairo, pella muita abundância que cá ha delle.

ORTA

Tendes muyta razam de vos cheirar milhor ; porque este nam he o benjuy que lá em Portugal se gasta ; porque este se chama benjuy de boninas, e custa muyto mais.

RUANO

De hum e do outro me dizey, pois falando na assa fétida me dissestes que nam era milhor pêra adubar os comeres que a assa fétida.

ORTA

O que entonces vos disse vos torno agora a dizer, que nunca pessoa usou do benjuy pera adubar os comeres, e da assa fétida que he muyto em uso temperar os comeres com ella, e deyvos pera isso razam que as cousas que cheiram mal, convém saber os alhos e cebolas e porros, adubam muito bem os comeres, e mais vos disse a esperiencia que era em contrairo da gente desta terra, que tam bem lhe sabia o comer com ella feito.


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RUANO

Agora quero saber o nome do arvore e do benjuy, cuja goma he, e em que terras nace, e como se chama acerca dos Arábios, e se falia algum autor arábio ou grego delle.

ORTA

Respondendo ao derradeiro, digo que dos Gregos não sei algum que escreva do benjuy ; e dos Arábios, Averrois[1] diz belenizan ou bolizan ou petrozan he quente e seco no segundo gráo, aromatiza o estômago húmido e fraco, e confortao, faz bom cheiro da boca, fortifica os membros, e acrescenta o coito. Eu, por estas palavras ditas assi brevemente não entendo ser o benjuy ; se algum deste testo o poder tirar, seja muito embora. Antre os modernos fala do benjuy António Musa e também Ruelio ; e o António Musa diz que o benjuy he a assa dulcis ou odorata, e pera isto dá razões que vos dixe, falando em assa fétida, scilicet, que os moradores da própria terra, constrangidos da verdade, lhe chamavam assa dulcis ; e que isto lhe dixeram Portuguezes que foram a Çamatra, ou pessoas que lho ouviram : mas quanto isto seja falso volo decrarey já, falando em assa fétida, e vos dixe que todolos rhoradores nessas terras donde o ha, lhe chamam cominham, e também vos dixe que os Portuguezes, sem nenhuma vergonha falarão o que não era verdade.

RUANO

Poisque falamos em António Musa, vos direi que diz mais, pera me satisfazerdes a tudo : diz que o arvore do benjuy nace em Africa e em Arménia, e que elle acrescenta também na índia ; e que traz Dioscorides, que da raiz sae huma farinha como farello, a qual elle muitas vezes achou no benjuy ; e mais diz que o ha na província de Cirenia ou de Judéa, e que este he o milhor que todos (1).

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  1. Averrois, hoc colliget (nota do auctor)


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ORTA

Não me ponhais medo com Dioscorides, nem Galeno ; porque não ey de dizer senão a verdade e o que sey, por mais que lhe chamem opus cireniacum (que quer dizer çumo de Cirenia); porque eu sey que o principal não o ha senão na índia, que está alem do Ganges (a que os Indianos chamão Ganga), e vem o benjuy, que chamam amendoado, de Siam ; e de todo este benjuy que vem á índia, a mór parte se gasta pera a Arábia e Turquia e Pérsia. E porque nam cuideis que ha alguma pouca cantidade delle em Judea e Palestina, vos digo que faley com Mouros e Judeos, e que o compravão pera o levarem pêra sua terra por mercadoria ; logo não he de crer que o comprassem pera Palestina, se lá ouvesse outro melhor, como dizeis.

RUANO

Respondeime ao que diz Ruelio[1], que nace huma raiz em França, a qual chama raiz angélica, ou raiz do Espirito Santo, ou emperatoria, que he quente e sequa no terceiro gráo, e he aperitiva e tem tantas virtudes ou mais das que vos dixe falando da assa fétida (2).

ORTA

Digo que bem pode ser, como vos dixe já no mesmo capitulo, aver em França essa raiz e lagrima; e que tenha tal virtude ou taes virtudes, como elle diz, porque homem tam douto bem sey que dirá verdade ; e certamente que nesta índia aproveitaria pera muytas enfermidades que elle diz : mas pera usar della, pera reprimir a deleitação da carne, pera o que diz que aproveita, não ganharia cá dinheiro quem a troxesse, porque os índios não buscam mezinha pera repremir o estimulo da carne, senão pera o acrecentar ; e pois aproveita pera o repremir, e a assa aproveita pera o acrecentar, claro he não o ser, pois tem a

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  1. Ruelio, livro estirpium (nota do auctor)


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obra contraria : nem em Judéa, como vos dixe, não o ha, segundo a relação que disso tenho ; e que o não ouvesse antiguamente se prova, porque alguma memoria ficara delle na gente da terra, e fora louvado por David e Salomão, que tanto louvaram os cheiros ; e bem sey que o nome emguanou a Ruelio, que dixe que se chamava benjudeum, que quer dizer filho de Judéa, e certamente que he milhor de crer que se chamara benjaoy, que quer dizer filho de Jaoa, onde o ha muyto.

RUANO

Pois que já me respondestes ao que dixeram estes doutores, respondeime ao que diz um milanês que nasce no monte Paropaniso, e que huns de Macedónia lhe afirmaram que o viram no monte Cáucaso, e que este tem grande cheiro, e he milhor que o nosso benjuy ; e alega este autor a Luduvico Vartomano[1], que diz que o milhor de todos he o de Çamatra : decraraime isto se he verdade ?

ORTA

Vós crede a esse milanês, que eu nam lho quero crer, nem aos Macedonios o que dixeram, pois cá vem tantos Rumes e Turcos cada dia, e levam o benjuy por mercadoria. E quanto he ao que dizeis de Luduvico Vartomano, eu falei, cá e em Portugal, com homens que o conheceram cá na India, e me dixeram que andava cá em trajos de mouro, e que se tornou pera nós, fazendo penitencia de seus peccados ; e que este homem nunca passou de Calecut e de Cochim, nem nós naquelle tempo navegávamos os mares que agora navegamos. E quanto he ao dizer que o ha em Çamatra, e que nam vem cá, he verdade que o bom vai na própria terra muito ; e porém todavia vem cá agora, e he o que chamamos benjuy de boninas. E eu tinha este Luduvico, que

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  1. Luduvico Vartomano (nota do auctor) ; isto é Ludovico Vartomano, ou Varthema, ou Bartema, que de todos os modos se encontra escripto o seu nome ; veja-se a nota (3).


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aleguais, por homem de verdade ; e depois, vendo o seu livro, acho que escreveo nelle o que á vontade lhe veo ; porque, falando em Ormuz, dixe que era huma ilha, ou cidade, a mais rica que podia ser, e tinha as mais suaves agoas do mundo ; e em Ormuz não ha outra cousa mais que sal, e todos os comeres e a agoa vem de fora da ilha ; e mais nam he muyto boa agoa essa que vem de fora. E, falando este Luduvico em Malaca, diz que nam tem agoa nem madeira alguma ; e tudo isto he falso, porque em Malaca ha muito boa madeira e muyto boa agoa. E por aqui vereis quam mal testemunha esse autor nas cousas da India (3). E tornando ao que diz esse milanês do benjuy de Macedónia, vos diguo que pôde ser estoraque, que, se vos Deos levar a salvamento, trabalhay de saber, posto que o estoraque nam o sabemos senam na Etiópia, onde ha mirra.

RUANO

Assi o farey, se Deos for servido. E agora me dizey de quantas maneiras o ha, e como he feita a arvore, e como se chama.

ORTA

Ha[1] uma especia, a mais vendavel de todas, que chamam amendoado, que tem dentro humas amendoas brancas ; e quanto mais amendoas tem, tanto he havido por milhor. Este ha todo o mais em Siam e em Martabam, que per a terra confina com elle ; deste he o que dixe António Musa que vinha mesturado com farinha da raiz delle, o qual é craro ser falso, porque a goma toda he huma : huma grossa, e outra delgada, e outra quasi dura, e fazse mais branca per tempo com o sol. E esta se faz ás vezes em farinha, que he a que diz António Musa que he farinha da raiz, e he das amendoas, como podeis esperimentar, pisando algumas. Ha outro benjuy, e mais preto, na Jaoa e em Çamatra ; e este he de menos preço ; e ha outro na mesma ilha

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  1. « He » na edição de Goa.


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de Çamatra preto, scilicet, de arvores novos ; a este chamamos benjuy de boninas, e vai dez vezes tanto como estoutro ; este he o benjuy que estoutro dia me mandaram aqui de presente.

RUANO

Eu vy esse benjuy, e nam me pareceo tam bom como estoutro a que chamais amendoado.

ORTA

Nam vistes o do outro dia, que cheirava muito milhor ; e esfreguando com as mãos ficava huma grande fragancia ?

RUANO

Si, vy ; e mais me dixestes que pello grande cheiro lhe poseram nome benjuy de boninas ou de flores ; mas eu nam daria tanto dinheiro por elle como qua se da ; pode ser que seja isto por eu nam ser tam grande senhor.

ORTA

Eu vos direy o que muitas vezes eu imaginei ; e he que este benjuy de boninas era mesturado com estoraque liquido, a que qua chamao roçamalha ; porque certo dá um cheiro della ao benjuy de boninas, e quilo esperimentar, mesturando o benjuy com estoraque liquido, fazendo delle pães ; e posto que cheirava milhor que o outro, não cheirava tam bem como este de boninas.

RUANO

Pois do outro dia me lembra que comprastes, a hum homem que vinha na náo em que eu vym, dez quintaes de estoraque liquido ; e me dixestes que o querias pera mandar a Malaca, pois elle nam ha lá de servir doutra cousa senam pera mesturar com benjuy.

ORTA

Nam vos enganeis nisso, porque lá nam se leva senam porque a gente he muito amiga do cheiro ; e dahi o levão á China todo o mais ; e outro algum se gasta noutras terras. E que isto seja verdade he manifesto ; porque o que levão


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á China, quando ha muita quantidade deste chamado delles roçamalha (4), logo nam se vende por se gastar pouco na terra. E a todas estas especias de benjuy lhe chamam os moradores da terra cominhan, e os Mouros lhe chamão louanjaoy, quasi encenso de Jaoa ; porque desse cabo ouverão primeiro noticia os Arábios ; porque louan chamão os Arábios ao encenso, e os Decanins e os Guzarates lhe chamão udo[1].

RUANO

Muito bem me parece essa derivaçam; porque nós chamamos ao encenso olibano, tomandoo dos Gregos ; e elles parece também que imitaram aos Gregos, chamandolhe corompidamente louan : e pois eu estou satisfeito disso, dizeyme a feiçam da arvore, se a sabeis.

ORTA

O arvore do benjuy he alto e bem fermoso e de boa sombra, copado nos ramos, os quaes deyta no ar muito bem ordenados ; o tronquo tem[2] do chão até os ramos muito alto e grosso e rijo de cortar ; he maciço na madeira, nacem alguns delles no mato de Malaca, em lugares húmidos ; os pequenos, como dixe, dão benjuy de boninas, que he o de Bayros, o qual he milhor que o de Siam, e o de Siam he milhor que todolos outros. Dão huns golpes aos arvores pera que saia delles a goma, que he o benjuy, em mais quantidade. As folhas do arvore me vieram, por huma banda metidas em vinagre, e por outra banda huns ramos, que amostrão ser verdade o que digo. Na madeira apparece esta folha mais pequena que a do limoeiro, e nam tam verde, e he per fóra branca : a do páo me parece folha de vimieiro, e nam tam comprida e mais larga. E todas es-

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  1. Ao benjoim, e não ao incenso; veja-se a nota (5).
  2. Grammatica um tanto singular — é o arvore que tem um tronco d'aquella feição.


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tas cousas me custaram a saber o meu dinheiro ; porque quem foy trazer estas folhas e estes páos do mato foy muy bem paguo ; porque, alem do trabalho que ha no mato de Malaca, ha muyto perigo, por causa dos tigres que andam nelle ; e a estes tigres chamam em Malaca reimões (5).

RUANO

Fazeyme tanta merce que se este anno vos vier alguma cousa nova de Malaca, em contrairo do que tendes dito, que mo escrevais ; e não vos pese de vos desdizer.

ORTA

Eu vos prometo que se Deos me der dias de vida, que não deixo de escrever todos os annos hum corretorio, que emende o que dixe, se ouver que emendar ; e se fordes morar a Castella lá o podeis saber ; porque a quem o eu escrever, lhe escreverey que volo mande. E porque vos dixe primeiro que o amendoado nam era tam cheiroso como o preto, que he de arvores novos, sabey que a goma velha per tempo perde o cheiro, como todas as outras cousas. E, se tomardes duas ou tres amendoas, e as poserdes sobre as brazas, nam vos ham de cheirar tam bem como o benjuy preto ; e porque o branco he fermoso e o preto cheira bem, mesturão, os que o vendem, hum com outro, e fica mais fermoso e cheira milhor.


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Nota (1)

Parece que o nosso Orta confundiu a « Cirenia » com a Judéa, quando é a conhecida peninsula Cyrenaica, a famosa região das cinco cidades, pentapolitana, no norte da Africa ; e não tem muita desculpa no erro, pois o seu Plinio explica por diversas vezes e claramente onde estava situada. O opus cyrenaicum, que não era o benjoim, como Orta muito bem diz, era o celebre laser, de que falíamos a propósito da asa-fœtida, e cuja identificação botânica se deve hoje considerar uma questão insolúvel.


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Nota (2)

Veja-se a nota (6) ao Colóquio VII.


Nota (3)

Aquella affirmação do celebre viajante Luiz Varthema, relativa ás aguas da ilha de Hormuz, e que tanto indignou o nosso Orta, não se encontra no texto italiano, pelo menos em uma das antigas edições que consultei, e no que publicou Ramusio. Diz-se ali exactamente o contrario : n'ella detta isola non si trova acqua... Parece, porém, que na versão latina se introduziram por engano as palavras : aquarum potu suavium — como já advertiu Varnhagen. E na edição hespanhola de Sevilha repete-se o mesmo : las aguas en ella son muy suaves. Vê-se pois que Orta teve entre mãos a versão latina, ou a hespanhola, e naturalmente fez obra pelo que leu[1]. Quanto a Malaca, é certo que Varthema diz : questo paese non é molto fertile, pur vi nasce grano, carne, poiche legne, o que não parece ser uma descripção muito exacta da península de Malaca (Cf. Itinerario del venerable varon micer Luiz Patricio Romano, libr. II, cap. II, Sevilla, 1520 ; Ramusio, I, 156 e 166 ; Varnhagen, na ed. dos Coloquios de 1872, a p. 30).

De um modo geral, as duvidas de Garcia da Orta sobre a veracidade de Varthema deviam ter fundamento. Bastará ler, por exemplo, o que o viajante italiano escreve a respeito do sultão de Gambaya e dos effeitos do betle, para adquirir o convencimento de que elle, ou inventava, ou acceitava o que lhe contavam com demasiada credulidade. Orta diznos, também, que tinha fallado com pessoas que ainda o conheceram na India, o que é natural, pois Varthema andava por lá no principio do século ; e diz-nos mais, que, segundo o informaram, elle nunca foi alem de Calicut e Cochim. Posto que Varthema conte a sua viagem a Malaca, ás ilhas do archipelago Malayo e mesmo ás Molucas, esta parte da sua relação pôde talvez ser composta pelas noticias que outros lhe deram d'aquelles paizes. Um dos mais sagazes e mais competentes juizes em taes questões, o fallecido sir H. Yule, poz em duvida esta parte das viagens ; e, fallando da noticia de Varthema sobre Java, acrescenta

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  1. Mesmo que Varthema tivesse dito que em Hormuz havia boa agua, não teria faltado á verdade. Na ilha encontrava-se pouca agua, e náo chegava para o consumo, tendo de ser transportada da terra firme ; mas alguma era boa. Diz António Tenreyro : « Huma legoa da cidade estão trez poços dagoa muito boa, e nam tem outra salvo de cisternas, ou salobra ».


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which I fear is fiction. E mais tarde, o mesmo Yule e Arthur Burnell, citando aquella noticia de Orta, de que Varthema não fora mais longe do que Calicut e Cochim, confirmam-n'a dizendo : a thesis which it would not be difficult to demonstrate out of his own (Varthema) narrative (Cf. Yule, Marco Polo, II, 270 ; Yule e Burnell, Glossary, XLV).


Nota (4)


Posto que a roçamalha só venha citada por incidente, merece uma nota particular.

Em primeiro logar, vemos que roçamalha — segundo Orta — era o nome oriental do estoraque liquido ; e em segundo, que não era uma producção da India, nem das regiões situadas para leste, pois Orta figura havel-a comprado a bordo do navio em que vinha o dr. Ruano, e manifesta a intenção de a mandar para Malaca. Effectivamente o storax liquido é produzido por uma grande arvore, Liquidambar orientalis, Miller, da familia das Hamamelideæ, que habita a parte sudoeste da Asia Menor, como modernamente averiguou o professor Krinos de Athenas. Ia, portanto, do Levante para a India, e d'ali para a China e outras regiões do extremo Oriente ; e isto desde tempos muito antigos. Ha todos os motivos para suppor, que uma droga, chamada pelos chins su-ho, levada para a China do Ta-ts'in, isto é, das províncias orientaes do imperio romano, era esta de que estamos fallando. E a mesma droga, sob outro nome, an-si siang (litteralmente perfume do An-si, isto é, das antigas regiões da Parthia), ía também para a China, durante a dynastia Ming (1368-1628), o que abrange o tempo do nosso Orta. Posteriormente, Kãmpfer (1690) dá noticia de que se importava regular e lucrativamente no Japão. Vemos, pois, que o su-ho, an-si siang, roçamalha ou storax liquido ía do Occidente para a India, e da India principalmente para a China — é exactamente o que Orta diz (Cf. Hirth, China and the Roman Orient, 263, Leipsic, 1885 ; Bretschneider, On the knowledge possessed by the ancient chinese of the arabs, 19 ; Kampfer, Hist. of Japan, citado na Pharmac., 242).

Passemos agora ao singular nome de roçamalha, que no livro de Figueiredo Falcão, por erro de copia ou do próprio Falcão, encontramos na forma ainda mais singular de Roza macha. Daniel Hanbury, em uns trabalhos eruditíssimos sobre o Storax (publicados em diversos jornaes e reunidos depois nos Science papers) apontou uma referencia de Petiver a esta substancia (1708), dando-lhe o nome de rosa mallas. Soube depois, que nos mercados do Oriente lhe chamavam rose malhes, rosmal, e outras formas mais ou menos corrompidas e alteradas do mesmo nome ; e acrescenta, que o único auctor seu conhecido, que alludiu á droga, dando-lhe um nome análogo, foi Garcia da


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Orta. Podemos ampliar um pouco estas noticias. Roçamalha não é um d'aquelles nomes vulgares, conhecidos unicamente do nosso naturalista, e averiguados pelas suas demoradas e pacientes pesquizas ; era no seu tempo uma designação geral e corrente no commercio portuguez. Antonio Nunes, fallando dos pesos de Hormuz, diz

« O baar da Roçamalha tem em todo como ho do llinho e como o arroz, sem aver nhũa deferemça. »

E, fallando de Malaca, dá a seguinte informação :

« O baar do Dachem pequeno tem 200 cates ; cada cate pesa 2 arrateis ; tem o baar 3 quintaes, 16 arrateis, pello qual se pesa estanho, seda da china, martim, antião, aguoa rosada, Roçamalha, camfora da china e outras mercadoryas. »

Por ambas as passagens se vê, que era uma designação conhecida, corrente, sem necessidade de explicação (Cf. Figueiredo Falcão, Livro de toda a fazenda, 118; Daniel Hanbury, Science papers, 129 a 149, London, 1876 ; Pharmacographia, 242; Lyvro dos pesos da Ymdia, 20 e 39, em Felner, Subsidios).

Têem-se proposto diversas etymologias da palavra roçamalha. Scaligero — nas notas a Orta — diz : non dubito scribendum esse Roç el-Maiha, id est liquor Storacis ; mas alguns arabistas, consultados pelos auctores da Pharmacographia, não admittem esta explicação. Notou-se também, que uma arvore, similhante á que produz o storax liquido, o Liquidambar altingiana, Blume, tem no Oriente o nome vulgar de Rasamala, e suppoz-se que houvesse troca de nomes. O sr. Dymock, porém, inclina-se a uma opinião, que parece mais acceitavel. Admitte que a palavra seja de origem europêa, e derivada do nome do manná doce, δροσόμελι dos gregos, ros melleus dos escriptores da idade media. Cita, entre outras, uma passagem do Makhzan-el Adwiya, livro árabe do século passado, onde se diz que : Rasímílíus é o nome grego de uma especie de incenso, chamado em hindi o incenso do Occidente. Isto é tanto mais plausível, quanto nós sabemos que a droga ía para a India e China das regiões occidentaes, e de um modo geral sabemos também, que os nomes de drogas e substancias empregados no commercio são quasi sempre oriundos das terras d'onde a droga ou substancia procede (Cf. Dimock, Mat. med., 314).


Nota (5)

Os eruditos auctores da Pharmacographia reconheceram o interesse especial d'este Coloquio, dizendo o seguinte : Garcia d'Orta, writting at Goa (1534-1560) was the first to give a lucid and intelligent account of benjoin. Com efteito antes do nosso escriptor sabia-se pouco sobre a procedência e variedades d'esta substancia.


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Orta começa por arredar da discussão tudo quanto disseram os antigos, não lhe parecendo que, nem gregos, nem latinos, nem mesmo os primeiros escriptores arábicos de matéria medica tivessem conhecimento do beijoim ; e com esta opinião concordam as modernas auctoridades sobre o assumpto, como Jonatham Pereira, e Flückiger e Hanbury (Cf. Elements of Mat. med., II, P. I, 683 ; Pharmac., 362).

Apenas, durante a idade media, se encontra uma menção rápida d'esta substancia, feita por Ibn Batuta sob o nome de lubán jáwi ou incenso de Java ; e indicações de que fez parte de alguns presentes, enviados pelos sultões do Egypto aos doges de Veneza e outros altos personagens da Europa (Pharmac., 362).

Vem depois as noticias dos portuguezes ; e em primeiro logar a do auctor do Roteiro da viagem de Vasco da Gama, o qual diz, que em « Xarnauz ha muito beijoim, e vall a farazalla trez crusados ». Já tive occasião de indicar em outro trabalho, como Xarnauz se identifica com Sião, e é a transcripção approximada de um nome muito usado pelos mercadores árabes da idade media, Schahr-i-Náo[1], empregado depois por Fernão Mendes Pinto na forma Sornau. Esta é, pois, — a meu conhecimento — a primeira menção do beijoim de Sião (Cf. Rot. de Vasco da Gama, 109; Flora dos Lusiadas, 83).

Segue-se-lhe Duarte Barbosa, o qual nota que no reino Dansean (Sião) «nase muyto bom beijoim, que he resina d'arvore, a que os Mouros chamaom Lobam » ; diz mais adiante que « nase » também na grande ilha de Çamatra ; e acrescenta em outra pagina que é cotado n'um certo preço no mercado de Calicut (Cf. Livro, II, 363, 368 e 384).

Taes eram as indicações existentes quando Orta escreveu. Este, porém, adiantou muito em relação ao que se sabia. Vejamos primeiro os nomes vulgares :

— « Louanjaoy » lhe chamavam os « Mouros ». Esta é a designação arábica mais geralmente empregada, lubán jáwí, litteralmente incenso de Java ; e da qual, por alterações successivas, vieram banjawi, benjui[2], e todos os nomes modernos da resina. Deve notar-se, que a designação de Jawá não se applicava unicamente a Java, deu-se também a Sumatra, e, de um modo vago, a todo o archipelago Malayo, distinguindo-se as procedências d'aquella região pelo adjectivo jawi (Cf. Yule, Marco Polo, II, 266).

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  1. O nome é propriamente persiano e significa Nova cidade, sendo talvez a traducçáo de Nava-purá ou Lophaburi, uma das antigas povoações de Sião (Cf. Yule, Marco Pollo, II, 122).
  2. A syllaba ban ou ben é, pois, a ultima da palavra lúban (incenso), e nenhuma relação tem com a palavra arabica ben (filho). O benjoim não é, portanto, o filho de Java, como Orta parece admittir.


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— « Udo » lhe chamavam no Deckan. É tambem uma designação arabica, ud, عود, que significa simplesmente madeira, lignum, mas se dá por excellencia a certas arvores. O nome de ud continua até hoje a ser usado em Bombaim (Cf. Dymock, Mat. med., 485).

— « Cominhan » nas terras onde nascia. É o nome malayo e javanez, que encontrámos nos livros modernos nas formas kamãñan, kamiñan e kamayan (Cf. Crawfurd, A descriptive dict. of the Indian islands, 50, London, 1856).

Passando ás procedências, vemos que Orta distingue duas qualidades. Uma d'ellas vinha de Sumatra e de « Bayrros ». Este Bayrros era na propria Sumatra, o porto de Barús, chamado pelos Arabes Fansur. É hoje quasi ignorado, mas foi durante seculos um ponto de importante commercio, por onde se exportava a melhor canfora, como veremos mais detidamente em outro logar. De Sumatra vinha, pois, um beijoim inferior ao de Sião, e em geral mais preto. Isto é exacto ; os auctores da Pharmacographia, comparando as duas resinas, dizem da de Sumatra : differs in its generally greyer tint (p. 364). Vinha, porém, d'aquella ilha um beijoim superior a todos, mesmo ao de Sião, a que os Portuguezes chamavam de boninas, o qual procedia — segundo Orta — das arvores novas. As informações modernas de europeus, residentes em Sumatra, e relativas á colheita do beijoim na terra dos Battas, não longe de Barús, confirmam inteiramente esta noticia, dizendo-nos que a resina das arvores novas, nos primeiros tres annos de exploração, é de melhor qualidade e chamada pelos malayos de cabeça, isto é, superior (Cf. Pharmac., 363).

A outra variedade de beijoim vinha de Sião, e era em geral melhor, « mais vendavel », de côr clara, e de aspecto « amendoado, que tem dentro umas amêndoas brancas ». A exactidão d'estas indicações reconhece-se facilmente, comparando a phrase de Orta com o que dizem os auctores da Pharmacographia (p. 364) da resina de Sião : the mass is quite compact, consisting of a certain proportion of white tears of the size of an aimond downwards, imbedded in a deep rich amber-brown, translucent resin. Esta variedade da droga vinha de Sião, ou pelos portos do golfo do mesmo nome, ou pelos da costa de « Martabam, que por a terra confina com elle » (Sião), como affirma o nosso Orta com muito correcta geographia.

Da arvore de Sião não falla Orta ; era-lhe desconhecida, e ainda hoje não está bem clara a procedencia botanica da resina d'aquellas terras. Mas da arvore de Sumatra, que também se encontrava no « mato de Malaca »[1], dá uma boa descripção. Diz-nos que a arvore é « copada nos

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  1. O Styrax Benzoin encontra-se eífectivamente na peninsula de Malaca (Cf. Hooker, Flora of British India, III, 589).


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ramos, os quaes deita no ar muy bem ordenados » ; e effectivamente o Styrax Benzoin, Dryander, é uma bonita arvore, com uma copa de folhagem densa e regular. Diz-nos também, que a folha é mais pequena que a do limoeiro, « e nam tam verde, e he per fora (por baixo) branca » ; isto póde comparar-se com a diagnose da especie em um livro moderno ... foliis oblongis, acuminatis, subtus albido-tomentosis.

Orta, que não foi a Malaca nem a Sumatra, sabia tudo isto por informações, e porque recebera exemplares seccos, e outros mettidos e conservados em vinagre. E tudo lhe custou a saber o seu dinheiro ; as explorações nos matos de Malaca eram caras, pois eram trabalhosas e perigosas por causa dos tigres, chamados ali reimõesarimau ou rimau em malayo.

Esta passagem é a mais explicita de todo o livro, pelo que diz respeito á feição scientifica e botanica das investigações de Garcia da Orta. Vê-se que elle pagava a collectores, os quaes lhe íam procurar ao longe os exemplares das plantas que não podia observar directamente. Procedia exactamente como procederia um botanico dos nossos dias, reunindo e colleccionando exemplares, que depois estudava e classificava, quanto então se podiam classificar.