Coloquio 5 (Garcia da Orta)

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Coloquio 4
Garcia da Orta, Coloquios dos simples, 1563)
Coloquio 6

[I, 65]

COLOQUIO QUINTO DO ANACARDO


INTERLOCUTORES
RUANO, ORTA


RUANO

Queria saber do anacardo, pois he nome grego derivado de coraçam, cuja feiçam e cor he ; e o porque me maravilho he, porque nam se acha escrito desta mezinha acerca dos Gregos antigos.


ORTA

Disso nam vos maravilheis, porque os Gregos modernos lhe poseráo este nome por a razam que dixestes aguora ; porque, pois era mezinha usada per escritores arábios, nam era razam que lhe mudaram o nome della ; porque elles lhe chamam balador, e se doutra maneira o achardes escrito por os livros, sabey que he o vocábulo ser corruto. Os Indos lhe chamão bybo, e nós os Portuguezes fava de malaqua ; porque a feiçam delle, no arvore onde nasce, parece fava maior que as nossas, e casi he da feiçam de humas favas que qua ha, que vieram primeiro de Malaqua. Segundo dizem alguns, ha muita copia desta mezinha em Cananor e em Calicut, e em todos as partes da India que eu sey, scilicet, Cambaya e o Decam (1).


RUANO

António de Lebrixa, no Dictionario, dixe anacardus, herva frequentada acerca de Galeno ?


ORTA

Verdade he que dixe isso Lebrixa, e que era muy docto e curioso, mas enganouse no nome grego ; e sem mais oulhar dixe que Galeno o dizia ; foy descuido, e nam vos ma-


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ravilheis disto, porque ás vezes dorme o bom Homero. Também Serapio alegua a Galeno[1] o qual nunca vyo anacardo, e mais diz que por ventura mata, o qual he contra a esperiencia do que vemos ; porque se dá nestas terras deitado em leite e nutrido para a asma, e também usam delle contra as lombrigas, e fazem delle, quando he verde, conserva com sal para comer (a que chamão qua achar) e vendese na praça como azeitonas acerca de nós ; e, quando he seco, usão delle em modo de cáustico para as alporcas : e toda a India também usa delle para pôr sinal nos panos misturado com cal. Avicena diz[2] que o anacardo he fruto semelhante aos caroços do tamarinho, e o seu miolo he semelhante á amêndoa, em o qual não ha damno, e abaixo diz que he contado entre os venenos e que mata. Por onde falla mais craro que Serapiam, que o põe em duvida, e mais está crara a contradição ; porque diz : em o qual não ha damno aparente, e depois diz que he contado entre os venenos e que mata.


RUANO

No que diz que nam ha em elle damno, entendese do damno aparente no principio, porque ao fim mata.


ORTA

Ainda que isso se possa salvar, comtudo não he veneno, pois o comem muitos índios qua em todo cabo, e o ser cáustico he depois de sequo (2).


RUANO

Em que grado o pondes, quente e sequo?


ORTA

Huns o põem no quarto quente e sequo, e outros na 2 parte do 3, mas nenhum d'estes me contenta, porque, em

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  1. Serapio, cap. 356 (nota do auctor).
  2. Avic. li. 2, cap. 41 (nota do auctor).


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verde, craro he que não he tanto quente e sequo, e em sequo nam parece razam fazelo tam quente e sequo como as outras especiarias, scilicet, a pimenta, que se põe no terceiro gráo ; nem acho ser vermelho, senão negro lúcido, e a isto não se pôde dar outra desculpa, senam que será mais quente e sequo o ciciliano (3), e terá a cor que pareça mais ao vermelho.


RUANO

Muito estou nisto conforme com o que dizeys, e mais me parece muito boa preparaçam a do leite azedo para a asma, entendendo per leite azedo, leite de que he tirada a sua manteygua, e isto he conforme a Avicena (4).


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Nota (1)

O «Anacardo» é o Semecarpus Anacardium, Linn. f., uma arvore da família das Anacardiaceæ, muito frequente na India. Os nomes vulgares, citados por Orta, são fáceis de identificar :

  • « Balador » é a sua transcripção do nome arábico بلادر, belader, ou بلاذر beladher (Cf. Ainslie, Mat. Ind. II, 371 ; Exotic., 249).
  • « Bybo », ainda se usa na India portugueza na forma bybó ; e em Bombaim na forma bibba (Cf. Costa, Manual pratico do agricultor indiano, II, 138, Lisboa, 1874 ; Dymock, Mat. med., 303).

E um facto digno de se notar, o não ter Orta mencionado o Cajueiro (Anacardium occidentale, Linn.), uma arvore muito mais interessante do que esta, e da qual poucos annos depois fallaram Christováo da Costa e Linschoten. A explicação d'este silencio é, porém, fácil. O Cajueiro, arvore americana, foi introduzido por aquelle tempo na índia, de modo que Orta nunca o viu em Goa, onde ainda se não cultivava ; e Christovão da Costa apenas observou alguns exemplares nas hortas de Cochim, para onde provavelmente os portuguezes o haviam trazido poucos annos antes do Brazil. O silencio de Orta, e a noticia de Costa, confirmam pois a idéa geralmente admittida da origem americana do Cajueiro, e marcam a data da sua introducção na Ásia, onde depois se tornou tão commum (Cf Christovão da Costa, in Exotic., 273 ; Navigatio ac Itinerarium Johannis Hugonis Linscotani, p. 60, Hagae-comitis, 1599 ; De Candolle, Orig. des plantes cultivées, 158. Paris, 1883).


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Nota (2)

O uso do fructo d'esta planta para marcar os pannos é bem conhecido na índia, e d'ahi lhe vem o seu nome vulgar inglez : marking nut. Quanto ás suas qualidades alimentares e medicinaes, e a algumas contradicções apontadas por Orta, estas resultam de uma circumstancia que elle não observou, e Christovão da Gosta notou mais correctamente, ou pelo menos mais explicitamente. Emquanto o pedúnculo carnoso do fructo e a semente, são relativamente inoffensivos, as camadas do pericarpo contêem, depois de maduras, um óleo negro, cáustico e fortemente toxico. D'ahi a possibilidade de comer o fructo, colhido verde, e preparado em conservas ; e, por outro lado, as suas applicações internas em pequeníssimas doses, ou externas como cáustico, depois de maduro (Cf. C. da Costa, Exotic., 272 ; Ainslie, Mat. Ind., II, 371).

Notaremos de passagem, que a phrase de Orta « a que chamão qua achar » define bem claramente a origem oriental d'este nosso termo culinário. Achar é a palavra persiana achár, que tem a mesma significação.


Nota (3)

É muito curiosa esta menção do anacardo « ciciliano », ou da Sicilia. A planta indiana havia sido provavelmente introduzida ali no reinado do imperador Frederico II (1220-1240) pelos judeus, que iniciaram n'aquella ilha algumas culturas de plantas orientaes, entre outras a do anil. O facto da existência do Anacardo na Itália, facto que devia ser pouco conhecido mas não escapou ás investigações de Orta, é-nos confirmado por um escriptor quasi contemporâneo. O Dr. Paludano, nas suas notas ao livro de Linschoten, falla dos fructos do Anacardo pendentes da arvore, e diz : quales in Siciliæ Æthna monte vidi(Navigatio ac Itinerarium, 83).


Nota (4)

Orta cita de novo n'este Colóquio o celebre erudito hespanhol, António de Lebrija, ou de Nebrija, e nota-lhe justamente um erro. Emenda-o, porém, com todo o respeito, devido ao que provavelmente havia sido seu mestre na universidade de Alcalá (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, 25).