Coloquio 47 (Garcia da Orta)
|
[259]
Nom accepté : Smilax china
Queria levar a Portugal alguma raiz ou páo da China...
[270]
O nome de « guaiacam », do americano guaiacan, usado, segundo parece, pelos indigenas das Antilhas, dava-se ás madeiras de duas arvores do mesmo genero, e da familia das Zygophylleæ : Guaiacum officinale, Linn., uma arvore mediana das Antilhas, Cuba, Jamaica, Trinidad e outras, e tambem da terra firme da America : Guaiacum sanctum, Linn., uma arvore muito similhante á precedente, da qual se distingue por caracteres puramente botanicos, e habitando nas mesmas regiões, Cuba e outras ilhas, e parte meridional da Florida.
Esta madeira foi conhecida, ao que parece, logo depois das primeiras viagens de Colombo, e começou a ser considerada um remedio poderoso nas doenças syphiliticas, que se haviam desenvolvido pela Europa de uma maneira pavorosa por aquelles fins do XV seculo e principios do seguinte. Julgava-se a doença de importação americana, como vimos já (II, p. 115), e isto contribuia para dar importancia ao
[271]
remedio, americano tambem. A madeira foi por isso conhecida pelos nomes de guaiacum sanctum, lignum sanctum, lignum vitæ, derivados da sua verdadeira ou supposta efficacia ; e deu logar a uma abundante litteratura. Logo no anno de 1517, um Nicoláo Poli, depois medico do imperador Carlos V, escreveu um opusculo curto, De cura Morbi Gallici per Lignum Guayacanum, onde nota, que aquelle remedio, quod sanctum cognominant, parecia vir providencialmente da terra, donde viera a terrivel doença. No anno seguinte (1518), Leonardo Schmauss conta no seu De Morbo Gallico tractatus, como mandara pedir informacões a respeito do novo remedio, e obtivera de Portugal e Hespanha dezenove cartas e noticias, sobre as quaes redigíra o que dizia de arbore guaiacana. As dezenove cartas levaram de certo tempo a reunir, por onde se vê, que se devia ter começado a fallar do remedia logo no começo do seculo, como já antes notámos. Tambem no anno seguinte (1519) Ulrich von Hutten, o conhecido partidario da Reforma, e tido na conta de um excellente latinista, escreveu um opusculo encomiastico, onde celebrava a sua propria cura : Ulrichi de Hutten equitis de Guaiaci medicina et morbo gallico liber unus. Este era o « fidalgo alemam » do nosso Orta, que, reconhecendo-lhe as qualidades de escriptor « em muyto copioso estilo e mui puro latim », lhe nota, no emtanto, que tudo aquillo podia ser escripto em « huma folha de papel ». Oviedo, no seu conhecido livro sobre as Indias occidentaes (1526), e muito mais tarde Monardes, no não menos conhecido tratado das Drogas de las Indias (1569), deram igualmentc varias noticias interessantes sobre o guaiacan ; noticias que não vem ao nosso caso, e não será necessario resumir.
Aquella droga vinha, pois, das novas possessões americanas hespanholas a Sevilha e outros mercados de Hespanha, d'onde, como vemos pelo nosso Orta, passava a Portugal, sendo exportada d'aqui para a India oriental.
(Cf. Pharmac., 92 ; Poli, Schmauss, e Hutten, em Aloysio Luisino, Aphrodisiacus, sive de lue venerea, p. 241, 383, 275 ; Oviedo, em Ramusio, III, 54 e 124 ; Monardes, nos Exoticorum, 312.)
A raiz da China pertencia a uma planta trepadeira e espinhosa da familia das Smilaceæ, Smilax China, Linn. (S. ferox, Wallich), espontanea na China e Japão, assim como em algumas provincias orientaes da India ; mas Orta não conhecia esta ultima procedencia.
Todo o 'Coloquio', com as suas longas e um tanto fastidiosas esplanações sobre as regras a seguir na applicação da raiz da China, e regimen dietetico a observar, é estremamente interessante para a historia
[272]
da medicina, pois é a primeira noticia scientifica, sobre a introducção na India de um nova remedio, que d'ali passou para a Europa. Não exige, porém, nem comporta uma longa nota, pois não tem muitos pontos obscuros a elucidar.
A nova droga, começada a applicar corn proveito na India, no anno de 1535, depois da noticia dada em Diu a Martim Affonso de Sousa, foi trazida desde logo para a Europa, creando-lhe sobretudo reputação o facto de ser tomada com favoravel resultado pelo imperador Carlos V, que soffria de gotta. E o celebre medico e cirurgião, André Vesalio, escreveu e publicou em o anno de 1S46 urna carta sobre este assumpto especial: Epistola rationem, modumque propinandi radicis Chinæ decocti, quo nuper invictissimus Carolus V imperator usus est. Orta conhecia esta carta, onde vem algumas criticas e reparos ao novo remedio [1]; assim como conhecia o que haviam dito em seu desfavor, e em seu loovor, o erudito Andre Laguna, e o eruditissimo Matthioli. A raiz da China, preconisada no tratamento das doenças syphiliticas, que atrahiam então todas as attenções, foi effectivamente muito discutida, louvada e preferida ao guaiaco por uns, e n'esse numero entrava o nosso Orta, tida em conta inferior por outres e creio que pelo maior numero. Por outro lado, as sarsaparilhas, provenientes de diversas especies americanas do mesmo genero Smilax, começaram quasi pelo mesmo tempo a ser conhecidas na Europa, e a sua crescentc reputação contribuiu para diminuir a voga da raiz da China. Na Europa caiu em quasi completa abandono ; mas no Oriente, na China e na India, onde é geralmente conhecida pelo nome persa chúb-chini (páo da China), consomem-se ainda hoje enormes quantidades d'aquella droga, sendo geralmente considerada anti-rheumatica, anti-syphilitica e aphrodisiaca.
A noticia de Orta, de que « na China comem este páo cozido com a carne, como nos os nabos », vem confirmada modernamente por Polak, citado na Pharmacographia, o qual affirma que serve de alimento aos Turcomanos e aos Mongoes. É possivel, no emtanto, que a noticia de Orta, como a de Polak, resulte de alguma confusão da raiz da China, chamada n'aquelle payz tu-fuh-ling, com um singular cogumello, o Pachyma Cocos, chamado fuh-ling, e que effectivamente serve de alimento.
Orta toca n'este Coloquio, como ja tinha feito no trigesimo quarto, em uma questão complicada, a antiga existencia da syphilis no Oriente, questão em que reconheço a minha absoluta incompetencia. Nao se percebe muito bem, se Orta admitte a importação da doença na Europa nos fins do XV seculo, o que era então a doutrina corrente, e unicamente
____________________
- ↑ O nosso Orta tem rasão, e Vesalio faz effectivamente, varias críticas ao novo remedio, devendo eu emendar n'este ponto o que disse em Garcia da Orta e o seu tempo, p. 294.
[273]
diz, que ella existira de todo o tempo n'aquellas « terras todas e na China e em Japam », como existia na America ; ou se francamente rejeita a doutrina da importação, suppondo aquella doença antiga em toda o mundo. Este ultimo modo de ver, foi sustentado em tempos relativamente antigos, assim como nos modernos, admittindo-se, por exemplo, que o chamado fogo persa, muito espalhado pelo Oriente, seria a syphilis ; e encontrando-se tambem na Biblia algumas passagens, significativas da existencia da doença entre os hebreus, desde o tempo de Moysés. No caso de Orta, como em muitos outros, a questão complica-se pelo facto de elle não distinguir claramente as doenças syphiliticas das simplesmente venereas ; e eu - repito- deixarei a discussão a pessoa mais competente.
Notarei unicamente dous factos, que parecem contrariar a opinião de Orta, e indicar uma importação no Oriente pelos europeus, principalmente pelos portuguezes : o primeiro, apontado pelo proprio Orta no Coloquio trigesimo quarto, é o nome fringui dada ás boubas na India, e que é a simples corrupção de frangue, e indica uma origem europea do mal, trazido pelos frangues ou francos : o segundo é uma phrase de Antonio Pigafetta, o companheiro de viagem de Magalhães na primeira circumnavegação do globo, o qual diz, que em Timor e outras ilhas (1522) chamavam á syphilis mal de Portugal : ... in tutte queste isole ... regna una malatthia che quei popoli la chiamano il mal di Portogallo, e noi altri in Italia il mal francese. (Cf. Pharmac., 648 ; a carta de André Vesalio em A. Luisino, Aphrodisiacus, 586 ; Dymock, Mat. med., 838 ; sobre o Pachyma Cocos e outras producções analogas, Hanbury, Science papers, 200 e seguintes ; Hamonic, Les maladies vénériennes chez les Hebreux à l'Époque Biblique, nos Ann. de Dermatologie et de Syphiligraphie (1886 e 1887) ; Pigafetta em Ramusio, I, 368 verso.)
As jarras martavans eram fabricadas na região da Indo-China, que lhes dava o nome, e muito apreciadas em todo o Oriente. Deviam ser de barro vidrado, posto que Duarte Barbosa diga serem de porcellana. Eis a passagem de Duarte Barbosa: « ... tambem se fazem n'este lugar (Martabam) muytas e grandes jarras de porcelana, muy grosas, rijas, e fermosas ; ha hy dellas que levaom hũa pipa dagoa ; saom vidradas por dentro de preto e muyto estimadas entre os Mouros ».
Linschoten (1598) ainda lhes attribue maiores dimensões, dizendo que algumas podiam levar duas pipas ; e Pyrard de Laval (1610) tambem as louva muito : ... des jarres les plus belles, les mieux vernies et les mieux façonnées que j'aye vu ailleurs (cf. Duarte Barbosa, Livro, 361 ; Yule e Burnell, Gloss., v. Martaban).