Coloquio 42 (Garcia da Orta)

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Coloquio 41
Garcia da Orta, Coloquios dos simples, 1563
Coloquio 43


COLOQUIO QUADRAGESIMO SEGUNDO
DO PAO DA COBRA. E HE DE TRES MANEIRAS




INTERLOCUTORES
RUANO, ORTA


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RUANO

Aqui em vossa caza vejo dar pera os meninos huma raiz ou pao, e chamamlhe pao da cobra ; dizem aproveitar pera as lumbrigas. Peçovos por merce, que em breves palavras me digaes o que he, de que terra vem, e se he abusam ou dito falso do povo, ou se aproveita pera alguma cousa.

ORTA

Nam he senão mézinha muyto apropriada á peçonha das serpentes ou cobras ; e disto ser esprementado pera as lumbrigas, e pera as bexiguas, e sarampam, e pera colerica pasio (chamada nestas partes mordexi), he fama comum da gente da terra, onde ha este pao. Tambem dizem aproveitar pera as febres de dificil medicaçam, segundo me dixe hum frade de Sam Francisquo, digno de fé, que a dera a hum homem que padecia febres antiguas ; e que lha dera duas vezes, moida e deitada em agoa em cantidade de huma onça, e que ficou sam, arrevesando muyta colera ; e, por aqui se soube que aproveitava ás febres antiguas.

RUANO

E como se sabe que he bom pera a mordedura das serpentes ?

ORTA

Na fermosa ilha de Ceilam, ainda que seja chea de muitas frutas e boas, e caça e montaria, todavia ha muytas serpentes, a que chama o vulgo cobras de capelo ; e nós em latim as podemos chamar regulus serpens ; e pera estas deu Deos nella este pao da cobra ; e soubese aproveitar pera a mordedura della, porque ha nesta ilha huns bichos, como forões,


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a que chamam quil (e outros lhe chamam quirpele) e pelejam corn estas serpentes muitas vezes ; e se sabe que ha de pelejar corn ella, ou se teme disso, morde hum pedaço desta raiz que está descuberto, e lambese com a mão, ou por milhor dizer untase com a mão, que tem molhada com o çumo, e faz isto na cabeça e no corpo, e nas partes onde sabe que a cobra, com o seu salto, lhe ha de ir morder ; e peleja com ella até que a mata, mordendoa e arranhandoa ; e se não acaba de a matar, ou ella tem mais força que elle, vaise o bicho chamado quil ou quirpele, e esfregase na raiz, e torna a pelejar corn ella, e asi acaba de matar ou vencer ; e daqui tomaram ocaziam os Chingallas, e corn esta experiencia viram que aproveitaria esta raiz e pao para as mordeduras das cobras ; e os Portuguezes com isto creram os bens, que a gente desta terra lhe dizia deste pao, e per tempo viram algumas espiriencias fundadas em rezam, por onde souberam aproveitar pera a peçonha ; e tambem souberam, e viram pollos seus olhos muytos, esta pelleja do bicho com a cobra ser verdadeira. E pera dardes mais fé a isto, se vos não enfadardes, vos contarei huma cousa que vio este frade de Sam Francisco, dino de fé e virtuoso, estando em Negapatam, que he huma terra firme, perto desta ilha de Ceilam [1].

RUANO

Antes me fareis muita merce em ma contar.

ORTA

Tem muitos homens portuguezes em caza estes bichos domesticos e mansos, pera lhe matarem os ratos, e pera os fazer pelejar corn as cobras de capello, que trazem os jogues com que pedem á gente esmolas. E sam estes jogues huns gentios, que andam pidindo per todas as terras, e andam emfarinhados corn cinza, e sam venerados de todo

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  1. Nagapattanam, na costa de Coromandel, logo ao norte do cabo de Calimere, a que os portuguezes chamavam cabo de Canhameira.


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o povo gentio, e de alguns mouros ; e porque andam muytas terras, sabem muytas mézinhas e esperiencias, mentirosas e verdadeiras : e alguns exercitam o joguo de passa passa, e trazem estas cobras, que dixe, e embebedam as, e mais lhe tiram os dentes e presas, porque lhe não façam mal ; e com isto, e com os beneficios que lhe fazem, as tratam com as mãos, e as cingem ao pescoço, e nos metem em cabeça que sam encantadas ; mas eu o tenho por mentira. E o cazo foy, que chamou hum portuguez em Negapatam a hum jogue, que trazia cobra, e dixelhe, se queria pelejar a cobra com o seu bicho, e o jogue porque tinha tirado alguns dentes, donde tinha a força, nao o quis fazer até que lhe deu hum crusado ; e veo o bicho pera a batalha apercebido, e andou primeiro metendose debaixo dos asentos, buscando se cheirava algum pao ou raiz, que fose do pao da cobra, e não a achando, com a sua propria saliva se molhou, e saio pera pelejar com a cobra ; a quai lhe saltou na cabeça, e o firio mal duas a tres vezes, e elle a ella outras tantas, até que se apartaram ambos mal feridos, porém ella pior que o bicho. E o jogue, achandose com o ganho da batalha, e com a cobra viva (porque sarou depois), trouxe outra cobra que não tinha os dentes tirados, e cometeo ao portuguez se queria que tornasem á batalha os animaes, e porém que lhe avia de dar mais, porque a sua cobra estava perto da morte, e que por isso trazia outra ; e o portuguez lhe deu outro tanto como antes lhe avia dado, e o jogue foy contente ; porque a sua cobra vinha milhor armada, e o portuguez com seu bicho apercebido pera a luta ou guerra, o qual elle afagou primeiro, e lhe trouxe raizes, e elle as mordeo por hum pouco espaço, e se untou com a mão molhada no que avia mordido ; isto fez pela cabeça e lombos e pella barriga ; e estando elle já apercebido, veo o jogue com a serpe, a qual se levantou em pé, casi do meo para cima, e deu hum salto, e o bicho lhe furtou o corpo, saltando para outro cabo, e asi se fizeram alguns cometimentos, tocando o bicho a cobra ás vezes, e outras vezes sendo mordido della ; finalmente o bicho lhe saltou na cabeça, e hum


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pouquo mais atras donde a mordeo, e a apertou, e a arranhou de tal maneira que, por andar cansada, a matou, porque andava muyto emfraquecida dos morsos primeiros ; porque he veneno o baffo do bicho pera ella, e desta maneira foy a cobra do jogue morta, e elle desesperado.

RUANO

Certamente que foy isso muyto, e deve ser verdade ; pois volo dixe esse religioso, dino de fé e credito : e peçolhe que me digua se ha este pao em outros cabos mais que em Ceilam, e me descreva e pinte a feiçam delle (Nota 1).

ORTA

Ha este pao de tres maneiras em Ceilam, e chamase, este de raiz mais estimada que vos contei, em Ceilam (terra dos Chingalas) rannetul [1], e he hum arbusto, e crece até dous palmos ou tres ; deita poucas asteas, scilicet, a té 4 ou cinquo, e sam muyto delgadas. E a raiz he a que se aproveita, e he delgada como a mais delgada vide nossa, e tem nós ou cabeças, e sempre alguma raiz deste pao esta de fóra da terra ; e se a mordem ou arrancam per alguma parte, lança loguo outras raizes, donde lhe tiraram a outra. A fruta que da este pao he como a do sabuguo, tirando que esta he vermelha e mais dura ; nace em cachos redondos, feitos como madresilva, e sam mais pequenos os grãos vermelhos, e mais apertados, como dixe ; e a frol que deita he muyto vermelha, e deita hum cacho redondo, e apartado da folha, que he como de pexegueiro, e o verde della he mais escuro ; e a cor da raiz he entre branco e pardo, e he muyto macia ao tocar, por não ser molle, e amargua muyto. Ha este pao em muitas partes, asi como em Goa, nas terras firmes : este se da bebido em agoa, e moido primeiro ; e nós o damos em vinho ou em alguma agoa cordial, e faz muyto pres-

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  1. Clusius transcreveu rametul, e assim tem sido citado o nome depois ; mas é claramente rannetul.


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tes sua operaçam : e tambem se móe, como sandalo, e se põe no lugar mordido ; este chamam boqueti avale em chingalá [1], e asi mo dixe o embaixador (Nota 2). Ha em Ceilam outro pao ou raiz contra a peçonha usado, como estoutro, e he hum arvore como romeira, e não maior, e as folhas sam amarelas muyto fermosas ; tem todo o pao espinhos, e os espinhos sam rombos, e a casca he branca e grossa, e gretada e muyto maciça e amarga, mas nam tanto como a do primeiro pao. O pao e a raiz e a casca he o que se dá tudo mesturado, mas a raiz dizem ser a milhor ; e este arvore, quando esta só, crece tanto como huma romeira, e se está com outros arvores ou mato, a que se arrime, lia o todo a modo de abobreira, e asi os ramos mais altos do arvore os cinge todos. Deste arvore mandei ja a emfermos que fizesem copos, e estes emfermos aviam sido tocados de peçonha, que lhe foy dada ; e creo que lhes aproveitara, porque as cousas continuadas aproveitam ; e já pode ser que aproveitem estes vasos pera fazer a comprisam triacal [2], como alguns doutores nossos a emsinão fazer, que he pera lhe não fazer mal a peçonha. Este pao dizem tambem alguns que ha na ilha de Goa, mas eu ainda o não tenho esprementado (Nota 3). Quando o viso rey dom Constantino foy a Jafanapatam, que he huma ilha, que parte corn Ceilam [3], troxeramlhe de presente huns feixes de hum pao com suas raizes, por ser cousa muito estimada contra a peçonha ; e cheira esta raiz bem, e he delguada e dura e preta ; e destas raizes e pao dizem que ha muyta nestas terras firmes de Goa. A folha deste derradeiro pao que diguo he como lentisco, he asi delguada e comprida, e malhada de branco e pardo, com malhas

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  1. Boqueti avale parece ser um segundo nome do rannetul ; mas póde tambem designar a mordedura ou ferida.
  2. A composição da triaga ou theriaca.
  3. Jafnapattam é habitualmente chamada uma peninsula, mas podia sem erro considerar-se uma ilha, mórmente no tempo de Orta, em que os esteiros divisorios seriam mais pronunclados.


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brancas e pretas : nam he verde. E os ramos sam delgados, e estendendose muito por terra, mais de quatro ou cinquo covados ; e as folhas sam muyto poucas, e os ramos poucos e delgados, que se não podem sostentar direitos. Deste derradeiro pao me deu conta o licenciado Dimas Bosque, pessoa de muito boas letras, e homem de muyta verdade, e de muyto gentil juizo nas curas que faz ; e pois mo elle gabou, e lá ouve tantos doentes, elle o podia bem esprementar, e ao menos seivos dizer que me avia de dizer verdade (Nota 4).

RUANO

Dizemme que em as partes de Malaqua tiram humas freichas empeçonhentadas, e que ha huma raiz contra essa peçonha, muyto esprementada ; folgaria de saber que cousa he.

ORTA

Por ser o mato cheo de tigres, e a gente pouco curiosa, nunqua me souberam dizer a feiçam da arvore ; e por isso vos não fallo aqui nella; somente me dixeram algumas pessoas que della vieram, ser o pao da cobra destas terras, e que asi lhe parecia, por serem as raizes de huma mesma feiçam ; e tudo póde ser, mas nao o afirmo, porque o nam sei bem sabido.

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NOTA (1)

Varios escriptores portuguezes dão noticias mais ou menos desenvolvidas dos conhecidos ascetas, nomades e mendicantes, chamados por elles "jogues", do nome hind. jogī, e do sanskr. yogin, derivado da yoga, um systema de meditação e austeridades, que se dizia conferir a quem o praticava poderes sobrenaturaes. Duarte Barbosa, attribuindo-lhes — sem razão, segundo creio — uma significação politica de reacção hindu contra a usurpação mahometana, descreve-os detidamente, insistindo, como Orta, no seu habito de andarem "emfarinhados com cinza" :

"... andaom nuus e descalsos, nem trazem nenhũa cousa na cabeça ... hos corpos e rostos trazem untados de cinza ... estes cha-


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maom Jones (sic) e Coamerques [1] quer dizer tanto como servidores de Deos".

Gaspar Corrêa menciona tambem o emprego habitual da cinza, á qual da uma origem particular :

"... andão sempre enfarinhados com cinza d'outros jogues, que morrendo os queimão, e chegando a seus devotos lhe poem d'aquella cinza na testa, e nos peitos, e nos hombros."

Orta, que os não toma muito a serio, diz-nos que elles reuniam ao seu caracter religioso, a qualidade de prestidigitadores. Encontramos esta noticia confirmada pelo viajante Bernier, um medico francez, que percorreu a India pouco depois de 1650, e exerceu a sua profissão nas côrtes de Scháh Jehan e de Aureng Zeb. Segundo Bernier, os jauguis, para demonstrarem a sua sciencia e poder, ou o seu jauguisme, como elle lhe chama, adivinhavam os pensamentos, faziam florir e fructificar um ramo secco em menos de uma bora, chocavam ovos no seio em menos de um quarto de bora, e executavam outras habilidades da curiosa e mal explicada prestidigitação oriental, a que o nosso escriptor chama desdenhosamente jogos de passa passa. Exerciam tambem a profissão de domadores ou incantadores de cobras venenosas, particularmente da cobra capello (Naja tripudians), uma profissão muito vulgar até hoje, e sobre a qual será desnecessario insistir. Unicamente notarei, que estes domadores de cobras não eram desconhecidos de outros escriptores portuguezes, contemporaneos de Orta. Como diz Barbosa: "... muytos tregeitadores trazem estas (cobras) vivas em panelas, encantadas que nam mordem, e com ellas ganhaom muyto dinheiro, pondoas ha ho pescoço, mostrandoas."

Gaspar Corrêa, referindo-se á malevolencia com que algumas cobras de capello haviam sido introduzidas na fortaleza de Calicut, conta como o capitão as mandou buscar por homens da terra :

"... que as sabiam tomar sem ellas lhe fazerem mal, por que levão elles atada nas mãos huma raiz de huma herva, que tem tal vertude, que a cobra em a cheirando fiqua douda sem picar nem bolir comsigo."

Como se vê, Gaspar Corrêa attribue tambem a immunidade d'estes incantadores de cobras ao emprego de certas plantas, questão que logo teremos de examinar mais detidamente.

(Cf. Yule e Burnell, Gloss., 351 ; e a citação de Bernier, 425 ; Duarte Barbosa, Livro, 310 e 341 ; Gaspar Corrêa, Lendas, I, 651, e II, 776).

A menção dos jogues e das suas cobras vem no Coloquio subsidiariamente, a proposito do combate da cobra com um "bicho", e sobretudo

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  1. Ha aqui varios erros de imprensa ou copia ; o nome em Ramusio é Coames, e parece que no manuscripto se deveria ler : "Coames, que quer dizer..." A palavra Coames, ou Çoames póde derivarse de suāmin, que em sanskrito significa senhor, e por extensão um servidor do senhor (Cf. Ramusio, I, 303 verso ; Yule e Burnell, Gloss., 671).


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a proposito das plantas a que esse bicho recorria. Os "bichos como foróes" são faceis de identificar com o bem conhecido Herpestes Mungo, Blandford (Herpestes griseus de muitos zoologos, Viverra e impropriamente Ichmeumon de alguns livros). Se a identificação d'este pequeno carnivoro é facil e não deixa duvida alguma, a dos nomes que Orta lhe dá é difficil, e não encontrei cousa parecida com "quil" ou "quirpele". O nome sanskritico d'este animal é नकुल, nakula, ao qual se devem prender uns nomes indianos modemos, newal ou nyaul, citados por Yule e Burnell ; por outro lado o seu nome telugu é mangīsu, donde vem mongús (como escreve João Ribeiro), o mungoose dos inglezes, a mangouste dos francezes e outras fórmas. Nada d'isto se parece com "quil", e repito não saber qual a origem dos nomes citados por Orta, sendo no emtamto segura a identificação do animal, pois os seus habitos são perfeitamente caracteristicos.

Todos conhecem as mençóes classicas do Ichneumon do baixo Egypto — uma especie do mesmo genero Herpestes — e dos seus combates com os aspides, vivamente descriptos por Plinio : ... mergit se limo sæpius, siccatque sole. Mox ubi pluribus eodem modo se coriis loricavit, in dimicationem pergit. In ea caudam attolens, ictus irritos aversus excipit, donec obliquo capite speculatus invadat in fauces.

Descripção posta em verso e ampliada por Lucano na sua Pharsalia :

Aspidas ut Pharias cauda solertior hostis
Ludit, et iratas incerta provocat umbra:
Obliquus que caput...

Do mesmo modo que o seu congenere do Egypto, o Herpestes da India ataca denodadamente as cobras, tanto as inoffensivas, como as venenosas e de grandes dimensões. D'ahi lhe veiu uma reputação muito antiga, sendo o nakula mencionado já, nada menos que no Atharva Veda (Dic. de S. Petersburgo, s. v.). E d'esta mesma circumstancia, assim como de ser um activo caçador de ratos, resultou o facto de ter sido domesticado na India, Ceilão e outras partes do Oriente, desde tempos muito remotos. Em uma fabula ou conto do Panchatantra (v, 2), repetida com algumas variantes de redacção no Hitopadecha (rv, I3), nós vemos um Brahmane, deixando o seu filho entregue á guarda de um nakula fiel, creado de pequeno na casa. Estes habitos conservaram-se até ao tempo de Orta, que nos falla •"dos bichos domesticos e mansos" ; e até ao de João Ribeiro, que na sua Fatalidade historica nos conta o caso escabroso de um mongús, imperfeitamente domesticado, embora dormisse na cama com o dono. Como se vê, o Herpestes da India tem uma litteratura tão respeitavel pelo menos como o do Egypto, e se o ultimo foi mencionado por Herodoto, Æliano e Plinio, o primeiro vem citado nos Vedas, e em mais de uma fabula do Panchatantra e do Hitopadecha.


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Do facto do mongús ou nakula atacar as cobras as mais venenosas, saíndo muitas vezes vencedor e incolume do combate, resultou naturalmente a idéa de que elle possuisse uma certa immunidade, ou na sua propria natureza, ou proveniente do emprego de varias plantas, nas quaes procura uma especie de preservativo ou de antidoto. Esta idéa é muito antiga, e no Amarakocha encontrâmos citados varios synonymos da planta ou das plantas que o nakula procura como antidoto, sendo alguns d'esses synonymos derivados do proprio nome do animal, como नाकुला nākulī e नकुलेछा nakulechta. É extremamente difficil saber a que planta ou plantas davam estes nomes. Sir W. Jones, em um interessante artigo acerca de plantas indianas, e a proposito de uma especie de Ophioxylum, da qual teremos de fallar na seguinte nota mais largamente, Sir W. Jones cita os nomes d'aquelle celebre vocabulario de Amarasinha, mas sem se pronunciar abertamente pela identificação. De resto, o Ophioxylon, como em geral a botanica indiana, era mal conhecido no seu tempo. Posteriormente têem-se citado varias especies vegetaes, pretencentes a diversas familias, como podendo ser aquellas a que recorre o mongús ; tem-se citado a Aristolochia indica, a Rauwolfia serpentina (Ophioxylon serpentinum), a Ophiorrhiza Mungos e outras ; mas não ha relativamente a nenhuma d'ellas, nem a prova de que sejam realmente activas, nem a prova de que o animal as procure.

Sir E. Tennent cita o testemunho de uma pessoa, que presenceou varios encontros do mongús com a cobra capello, e viu o animal comer herva nos intervallos do combate ; mas apparentemente uma graminea, uma herva qualquer, como para se refrescar. Blandford tambem não crê, que elle procure uma ou mais plantas especiaes como antidoto ou prophylactico, assim como não crê, que da sua constituição lhe resulte immunidade em relação ao veneno da cobra capella e outras. Segundo este observador, os triumphos frequentes do mongús resultam da sua pellagem espessa e eriçada, em que os dentes da cobra penetram difficilmente, da dureza do seu couro, e sobretudo da astucia e destreza com que evita o ataque da cobra, e aproveita a occasião de lhe pegar no toutiço, inutilisando-lhe as presas venenosas — d'aquelles artificios, descriptos ja por Plinio e Lucano.

Assim como se tem attribuida ao uso de varias plantas a immunidade supposta do mongús, assim se attribue a essas plantas, como já dizia Gaspar Corrêa, a immunidade tambem supposta dos domadores de cobras. É certo que elles apparentam usar de certas raizes ; mas parece haver n'isto uma simples illusão, ou um acto de charlatanismo. O seu principal meio de acção, quando lidam com cobras ainda munidas das presas venenosas, como succede varias vezes, parece consistir na resolução energica e na promptidão dos movimentos, que dominam completamente o reptil. Em todo o caso a immunidade não existe, e citam


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se varios casos de domadores, mordidos pela cobra capello, e que succumbiram promptamente ao effeito do veneno.

Voltando a Orta, vemos que elle repetia simplesmente uma crença commum e muito antiga.

(Cf. Blandford, The fauna of British India, 123, London, 1888 ; Plinius, VIII, 36, ed. Littré ; Lucanus, Pharsalia, IV, V, 729 ; Ribeiro, Fatalidade historica, na Coll. de not., v, 58 ; Amarakocha, tr. de Loiseleur Deslongchamps, 1re partie, 103, Paris, 1839 ; Sir W. Jones, Botanical Obs., in Asiat. Res., IV, 309 ; Tennent, Ceylon, I, 145 e 197).


NOTA (2)

Do que fica dito na nota anterior, se vê como naturalmente se indicaram muitas e diversas plantas, dizendo-se serem aquellas a que o mongús e os naturaes da terra recorriam como prophylacticos ou antidotes, e podiam, portanto, aproveitar nos casos frequentes de mordeduras de cobras. Multiplicaram-se, pois, os chamados paos da cobra, e é muito difficil identificar todos aquelles de que fallam os diversos escriptores, podendo mesmo suscitar-se alguma duvida acerca dos tres, meocionados e descriptos por Orta.

O primeiro e — segundo elle diz — o mais estimado póde identificar-se com a Rauwolfia serpentina, Benth. (Ophioxylon serpentinum, Linn ; Ligustrum foliis ad singula internodia ternis, Burmann. ; Clematis indica, Persicæ foliis, fructu Periclymeni, Gaspar Bauhino ?) uma pequena planta, pertencente a familia das Apocynaceæ, que foi figurada já nos tempos antigos por Rhede, Rumphius e João Burmanno. A descripção de Orta, salvas uma ou duas notas menos concordes, quadra bastante bem áquella planta. Assim, elle diz que cresce até dous palmos ou tres ; e — segundo as diagnoses de Hooker — a Rauwolfia attinge habitualmente de 6 a 18 pollegadas, chegando excepcionalmente a 2 ou 3 pés : diz que a flor é "muyto vermelha" ; e, comquanto a corolla da Rauwolfia seja superiormente branca, os pedunculos e tubos da corolla são intensamente vermelhos, de modo que o vermelho é a côr dominante na inflorescencia, sobretudo na inflorescencia nova : diz que deita "um cacho redonda e apartado da folha" ; e a inflorescencia da Rauwolfia consiste em cymos arredondados e longamente pedunculados : compara a folha com a do pecegueiro, e o fructo com o da madresilva, o que não anda muito fóra de proposito, e lembra a phrase de Bauhino no Pinax : diz, na verdade, que a fructa é vermelha, quando as drupas da Rauwolfia são negras, mas n'isto póde haver um engano, ou uma má apreciação do tom roxo denegrido. Em resumo, e quanto podemos julgar por uma diagnose, feita nos meados do XVI seculo, o primeito pao da cobra deve ser a Rauwolfia serpentina.


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Aos motivos de identificação, que resultam da curta descripção de Orta, acrescem outras de diversa natureza. Esta planta foi uma das mais celebradas, ou a mais celebrada na India, como antidoto supposto ou verdadeiro nos casos de mordeduras de cobras. Parece ser a planta, ou uma das plantas mencionadas na passagem do Amarakocha, que citámos na nota antecedente ; e uma circumstancia — ainda não apontada que eu saiba — vem em apoio d'esta identificação. Um dos nove synonymos do Amarakocha, छत्राकी, chatrākī, significa umbella, ou cousa em fórma de umbella, e podia muito bem applicar-se ao cymo denso e achatado da Rauwolfia. Passando aos botanicos posteriores a Orta, temos Rhede, que falla d'esta planta, sob o nome malabar tsjovanna amelpodi, diz que os portuguezes lhe chamavam talona, e affirma que a raiz tinha a reputação de ser um remedio soberano contra mordeduras de cobras e picadas de lacraus : temos Rumphius, dando-lhe o nome latino radix mustelæ, e o nome portuguez raiz de mongo, identificando-a assim com a planta do mongús : temos tambem Burmanno, identificando-a explicitamente com o Lignum colubrinum primum et laudatissimum Garȥiæ ab Horto. Tudo isto, junto naturalmente á concordancia de caracteres, nos leva a uma identificação bastante segura.

O nome vulgar d'esta planta é, segundo Orta, "rannetul", que foi por engano transcripto rametul na versão latina de Clusius, e depois todos citaram na ultima forma. Nem na primeira, nem na ultima forma se encontra ; e já o antigo botanico Hermanno, nos rotulos do seu herbario, notava que a planta se chamava vulgarmente em Ceylão acawerya ou akawerya, e elle não sabia por que motivo Orta havia dito que lhe chamavam rametul. É claro que esta troca de nome vulgar de modo algum póde lançar uma duvida sobre a identificação, que me parece segura (Cf. Hooker, Flora of British lndia, III, 632 ; Rhede, Hort. malabaricus, VI, t. 47 ; Rumphius, Herb. Amb. VII, Auctuarium, 29 ; J. Burmanni, Thesaurus Zeylanicus, 141, t. 64, Amstelædami, 1737 ; Ainslie, Mat. Ind., II, 441 ; Dymock., Mat. med., 505.).


NOTA (3)

A identificação d'este segundo pao da cobra é um pouco mais incerta ; parece, no emtanto, que Orta quiz fallar da Strychnos colubrina, Linn., uma planta lenhosa da familia das Loganiaceæ, que passou sempre por ser a origem da maior parte do páo de cobra do commercio, e Rhede figurou e descreveu sob o nome malabar modira caniram, e o nome portuguez 'páo de cobra.

O que Orta nos diz do porte da sua planta, comprehende-se bem, poisque a S. colubrina, sendo uma especie lenhosa e sarmentosa, póde formar uma arvore pequena quando esteja isolada de qualquer supporte,


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e desenvolver-se mais largamente, como todas as plantas trepadeiras, quando se enleia em outras arvores. Tambem os caracteres da casca não desdizem da S. colubrina, cuja casca é esbranquiçada (ash coloured, diz Roxburgh) e bastante espessa e gretada, havendo no genero Strychnos um desenvolvimento consideravel da camada suberosa. É tambem muito amarga esta casca, como é a da Strychnos Nux-vomica e de outras Loganiaceæ. Comprehende-se menos o que Orta quer dizer, quando falla de "folhas amarellas muyto fermosas" ; e suscita sobretudo difficuldades a sua referencia aos espinhos, pois a S. colubrina é inerme. Elle usa, porém, de uma expressão um tanto enygmatica, dizendo que os espinhos são "rombos" [1]. Talvez por esta expressão elle quizesse designar os cirrhos simples e incurvados da S. colubrina, que nos caules mais antigos engrossam e se tornam lenhosos.

Ha outra especie do mesmo genero, espontanea no Malabar e Ceylão, Strychnos minor, Blume, a que Orta se podia tambem referir ; mas a difficuldade resultante da menção dos espinhos subsistiria, porque a S. minor é tambem inerme. Em resumo, parece claro que Orta falla de uma especie de Strychnos, e muito provavelmente da S. colubrina que foi geralmente chamada páo da cobra, e teve uma grande reputação nas applicações a mordeduras de cobras venenosas, e outros "toques de peçonha" — como diz o nosso escriptor.

(Cf. De Candolle, Prodromus, IX, 14 ; Roxburgh, Fl. Indica, I, 577 ; Herail e Bonnet, Manip. de Botanique médicale, t. 14, Paris, 1891 ; Rhede, Hort. malabaricus, VIII, t. 24 para a Strichnos colubrina, e VII, t. 5, para a S. minor ; Ainslie, Mat. Ind., n, 202 ; Dymock, Mat. med., 533, advertindo que a citação de Rhede vem errada, tanto em Ainslie como em Dymock.)


NOTA (4)

O terceiro páo da cobra de Orta deve ser o Hemidesmus indicus, R. Brown (Periploca indica, Willd., Asclepias pseudosarsa, Roxb.), uma pequena planta trepadeira, da familia das Asclepiadeæ, que habita na India e em Ceylão.

O professor Flückiger e o fallecido Daniel Hanbury chamaram, em uma nota da Pharmacographia, a attenção para a similhança das raizes de Hemidesmus com uma droga, figurada e descripta por Acosta sob o nome de Palo de Culebra ; e eu julgo que o terceiro páo da cobra de Orta é identico a este palo de culebra de Acosta e ao Hemidesmus indicus, identificação que assenta sobre os caracteres apontados por Orta.

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  1. A versão de Clusius não é exacta ; spinis brevibus et firmis não traduz os problematicos "espinhos rombos".


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Diz o nosso escriptor, que a raiz d'este seu páo da cobra é delgada, dura, preta e cheira bem : segundo a Pharmacographia, as raizes do H. indicus são delgadas, de 2/10 a 7/10 de pollegada de espessura, tem a côr escura (dark brown) e um cheiro agradavel, similhante ao da fava de Tonka ou do meliloto. Diz ainda Orta, que as hastes da planta são delgadas, debeis "que se não podem sustentar direitas" ; e as folhas, compridas e delgadas, como as do lentisco, e malhadas de branco e pardo ; segundo Roxburgh, os caules da Asclepias pseudosarsa (H. indicus) são delgados (slender), diffusos ou trepadores ; e as folhas dos rebentos novos são lineares, agudas, estriadas de branco ao longo da parte media. Se abstrahirmos de algumas incertezas de expressão, naturaes em uma descripção do tempo de Orta, vemos que a concordancia de caracteres é absolutamente satisfactoria.

As raizes de Hemidesmus são muito usadas na medicina hindu, admittidas officialmente na Pharmacopéa da India, e tidas na conta de tonicas, alterantes, diureticas e diaphoreticas. Não admira, pois, que fossem consideradas especialmente uteis em toda a mordedura de culebras, assim como em tercianas, desmayos, flaquezas de estomago, y temblores de coraçon. Segundo Acosta, bastava trazer uma d'estas raizes na mão para estar seguro contra toda a culebra ou bivora, que fugia para outra parte.

Em Goa — segundo refere Dymock — encontram-se hoje a venda nas lojas dos hervanarios as raizes de Hemidesmus, sob o nome de uperção, que é uma simples alteração do nome mahrata uparsára.

(Cf. Flück. e Hanb., Pharmac., 379 ; C. Acosta, Tractado de las drogas, 341; Roxburgh, Fl. Indica, II, 39 ; Dymock, Mat. med., 509).