Coloquio 31 (Garcia da Orta)

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Coloquio 30
Garcia da Orta, Coloquios dos simples, 1563)
Coloquio 32


COLOQUIO TRIGESIMO PRIMEIRO DO PAO CHAMADO CATE DO VULGO, E DIZSE NELLE COUSAS PROVEITOSAS


Nom accepté : Areca catechu.

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INTERLOCUTORES
RUANO, ORTA


RUANO

Queixandome da relaxaçam e molificaçam das gengivas, me dixe a vossa cosinheira que comese betre e areca e cate, tudo mesturado ; e mais me dixe que o cate só era milhor que tudo ; e proveio, e tem hum sabor estitico, e amarga alguma cousa. E dixeme tambem que sabia muito bem a aguoa bebida sobre elle, e proveia, e não me soube tam bem como isso, pollo sabor amarguoz ; entonçes me dixe que, com a mestura do betre e areca, sabia muyto bem ; e certo que a mim me parece muyto boa mésinha pera desecar e apertar. Saibamos donde he, e como se chama, e como se faz ; e mais queria saber a feiçam do arvore, e pera que se usa em mésinhas desta terra, e se fazem alguns escritores memoria disto.


ORTA

Ha este pao em Cambaia a maior cantidade, scilicet, nas terras de Baçaim, e Manora e Damam, cidades delrey nosso senhor, com suas terras ; tambem o ha em as terras firmes de Goa e em outras muytas partes ; mas nam em tanta cantidade como nas terras que dixe, porque dali se levam pera Malaca e pera a China, e isto em muyta cantidade ; e tambem isso levam pera Arabia, e Persia e Coraçone ; mas isto he per via de mézinha em pouca cantidade ; mas pera a China e Malaca se gasta em muita cantidade, porque se come com o betre. E acerca de todos se chama cate, e em Malaca cato ; e alguns varião este nome pouco ; e ja pode ser que, pois os Arabios e Persios e toda a gente desta terra lhe chamam cate, ou variam pouco, que seja a causa disto


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gastarse a maior cantidade nas bandas de Malaca, onde lhe chamam o dito nome, asi como se faz no costo, como vos ja dixe; porque chamandose na sua propria terra uplot, lhe chamam todos pucho ; porque he grande mercadoria pera Malaca, onde se chama asi[1]. E o arvore donde se faz este cate he tam grande como hum freixo, e a folha he myuda como a das urzes, ou jounas, que chamam em Portugal ; e tambem o podemos comparar á tamargueira ; tem muytos espinhos, e todo o anno tem folha  ; he pao muyto rijo e mocico e pesado ; nunqua podrece, segundo dizem, nem com sol, nem com aguoa, e tanto que se chama este pao, ácerca delles, pao que sempre vive ; sofre este pao muyto os golpes ; por isto, e por ser muyto pesado, se fazem delle huns paos com que tiram a casca ao arroz nesta terra, e chamamse pilões ; e pisam em hum pao muyto grande, feito a feiçam de gral ; e este pao, que metem dentro a pisar, he feito como mão de gral, e de comprimento de seis palmos. A este arvore chamam, na terra donde nace, hacchic[2] : e pode ser que por eu nao saber a lingoa desta terra tam bem como a portugueza, nao pude saber a rezam porque lhe chamam cate : mas a baste a rezam acima dita.


RUANO

Está bem relatado tudo isso que dizeis; mas queria saber se tem flores ou fruta.


ORTA

Flores tem, mas fruta me dizem que não a tem.


RUANO

Dizei o modo de confeiçoar estes troçiscos ou formas que trazem.

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  1. Veja-se o Coloquio decimo setimo, e as suas notas.
  2. Na edição de Goa esta hac chic, se intencionalmente, se por erro não o saberei dizer, pois não identifiquei este nome.


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ORTA

Tomam estes paos cortados deste arvore muyto meudos, e cosem os e pisamnos ; e delles fazem formas, a modo de trociscos ou chans, e formam as com farinha de nachani, que he huma semente preta e meuda de que fazem pam, que sabe como centeo ; e com esta farinha e cinza de hum pao preto que ha na terra, ou sem ella, formão estas talhadas, e as enxugam á sombra ; porque nao lhe tire o sol a sua virtude. E pois estas gentes todas o gastam, e os Chins, sendo tam descretos e sabidos, podeis asentar que he muyto boa mézinha ; quanto mais que eu a esprementei em camaras e em paixões dos olhos, e acheia muyto boa. E quanto he o saber se fazem mençam della alguns escritores, dirvoshia huma cousa que eu tenho por muyto certa pera mim, se me derdes licença (1).


RUANO

Antes me fareis nisso muyta merce.


ORTA

Diguo que o cate he o que chamam Galeno e Plinio, e Dioscorides e Avicena, e Serapiam e Rasis licium ; e os Gregos lhe chamam licium, porque se achou primeiro em Licia (provincia da Turquia) ou porque ahi se achava milhor nesses tempos ; e os Arabios, como Avicena e Serapiam, o chamao hacdadh.


RUANO

Pois como dizeis que he esse o licio, poisque não se chama cate por os escritores Arabios, nem por o arabio vulgar ? E pois que isto asi he, me dizey porque chamaes cate ao licio.


ORTA

Chamolhe asi, porque todos os escritores modernos e antigos, Gregos, e Arabios, e Latinos, e Indios, todos preferem o indio e licio[1] a todos os outros ; e mais porque he este,

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  1. Sic na edição de Goa ; mas ha aqui uma inversão evidente. Deve ler-se o licio indio, ou da India.


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e asi o ensinam a fazer todos, como cá se faz ; e mais porque as cousas todas pera que aproveita o licio usam nesta terra a fazer do cate ; mais porque tem as condições que ade ter o bom licio ; e aproveita ao fluxo dos olhos e fortifica as gengivas e dentes, e lhe mata o bicho, se o tem criado nelles ou nas gengivas ; e aproveita pera a garganta e pera as lombrigas e pera as camaras. E, quanto he a não o chamarem os Arabios cate, a isto vos respondo que muytas cousas perdem o nome na propria lingoa com o uso da lingoa alhea. E já pode ser que, se me vir com fisicos Arabios, que me digam se tem na lingoa arabia outro nome. Porque vos disse que todos falavão neste simple, digo que Galeno diz[1] que he huma arvore espinosa, e que o melhor he o da India, e que ha muito em Licia e Capadocia, e tem virtude de restringir e de secar ; e o mais que diz não faz ao caso. Plinio[2] dá vantagem ao indio, e diz que se traz em odres de camellos e rinocerotes, e diz a maneira como se fazem, e todos concordam. E porque ja vos disse como se fazia, nisto não fallo mais.


RUANO

Por não estrovar pratica tam boa, nNao vos pergunto por esses odres, e ao fim volo lembrarei.


ORTA

A tudo vos responderei ; e diguo que Dioscorides louva mais o da India, e põe a feiçam da arvore, e não a difere da arvore do cate, senão em pouquo, e mais em fazer arvore pequena, sendo grande ; e diz como se parece ao buxo, e que o mais nace em Licia e Capadocia ; e, quando diz o pera que aproveita, diz como os outros que tem virtude de apertar e confortar. E lendo o capitulo de Dioscorides, ve-

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  1. Galeno, 71 Simplicium (nota do auctor).
  2. Plinius, libr. 24, cap. 14 (nota do auctor); a citação é exacta, no sentido de Plinio fallar do lycion no livro XXIV ; mas errada em ser no livro XII, que elle diz parte do que Orta repete.


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reis como os Indios usam delle, da maneira que elle diz. Avicena o chama hacdadh ; diz que he mais forte e melhor o da India, que o que vem de Meca ; o qual de Meca sey eu que he este que vay da India ; e diz que quando delle carecermos, que em seu lugar ponhamos areca e sandalo.


RUANO

Para isso melhor diz a vossa cozinheira, que o faz de betele e areca e o mesmo cate[1].


ORTA

Estes tem isto por uso do principio da povoaçam desta terra ; e mais Rasis diz[2] que se faz de çumo de berberis, feito muyto basto por cozimento ; e o mesmo diz Serapiam chamandoo hacdadh.


RUANO

E os novos escritores que julgam disto ?


ORTA

Sepulveda diz que o façam de çumo de madresilva, e o mesmo diz Valerio Probo ; e Laguna diz que carecemos do verdadeiro licio. Antonio Musa tambem diz que o não conhece, senão que por os sinaes de Dioscorides lhe parece ser buxo. Os Frades desejão muyto que se ache o verdadeiro licio ; porque feluzalange, que, per conselho de Avicena, se põe em seu lugar, que he a arvore do licio, segundo a traduçam do Belunense, tambem carecemos della ; e que pera pôrem em seu lugar faufel, que he areca, e sandalo, como diz Avicena, he mais deficultoso de aver o faufel, e mais diz que não sabem bem o que he.


RUANO

Como, não ha muito sandalo vermelho em Portugal se de qua vay, não podem levar muyta areca ?

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  1. Uma boa phrase, cheia de bom humor e de malicia.
  2. Rasis, 3 ad Almansorem (nota do auctor).


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ORTA

Si ; mas sam os boticairos portuguezes pouco deligentes em aver mézinhas, e muito em aver dinheiro ; porque se elles a pedisem em Portugal na Caza da India, levalaiam de cá em abundancia.


RUANO

Asi que, náo se achando o nosso licio, vós afirmaes que aproveitará estoutro indio ; e n<nao oulhaes que se chama licio, porque ha o melhor em Licia e Capadocia, que parece que este se deve perferir a todos.


ORTA

Eu nam digo que se deite em lugar o licio indiano licio de Licia, mas diguo que, quando falecer o da India, se deite o de Licia, porque esta he a entençam de todos os escritores ; e que, quando elle faltar, que usem do feyto de berberis e de madresilva, ou de amexas bravas estiticas. E ao que dizeis, que se chama licio por exçelencia por ser de Licia, digo que não he asi com perdam de vossa merce, senão porque ahy se achou o uso delle primeiro, scilicet, achouse o uso desta mézinha, que se parecia com o da India, e que por falta e defeito do da India se avia de deitar : e esta he a verdade, e outra não ; porque em nenhuma regiam se usa deste cate tanto, como nesta terra (2).


RUANO

Levaloei desta terra, e usarei delle, pois que cá fez os efeitos que dizeis ; e mais será bem que me digaes se ha nesta terra muytos odres de camellos e de rinocerotes, como diz Plinio, que nelles o levam, pera vermos a cantidade delles por o seu coiro.


ORTA

Eu não vi odres de camellos desta terra ; posto que no Decam e em o Guzarate ha alguns camellos, que tem os reys e os capitães pera levar o fato na guerra ; mas nem sam tantos os que morrem como cavallos, pera que delles façam odres. E quanto he aos rinocerotes (a que os Indios


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chamam gandas), não os ha domesticos nesta terra ; e pode ser que os aja bravos em Bengala ou no Patane, e nas terras que tem os Patanes os ha, e alguns fazem domesticos. E porem eu não vi algum rinocerote, mas sey que os de Bengala usam do corno para a peçonha, cuidando ser o unicorneo ; mas elle não o he, segundo a entençam dos que bem o sabem ; porque o Nizamoxa pesára 200 vezes a ouro hum pouco de unicorneo exprimentado, e muyto melhor tomára o do renoceros[1]. E sabei que no anno de 1512 foi apresentado a elrey Dom Manoel, que está em gloria, hum que lhe mandou elrey de Cambaia, o qual elle mandou ao Papa. E se deste animal quiserdes ver, lêde Plinio, libro 8, cap. 20[2] ; e Estrabo tambem fala deste animal.


RUANO

Pareceme isso que dizeis que nao ha unicorneo na India ; pois nam falais nelle, e dizeis que o não tem esse rey vosso amiguo, sinal he isso de o não aver na India ; e pois nós tambem não sabemos onde aja o tal animal.


ORTA

Dizem tantas cousas incertas desse animal, que, por nam as saber bem, não as queria contar ; porque as pessoas que mas contam, não as contam como testemunhas de vista. E comtudo vos direi o que ouvi a pessoa de autoridade em seus ditos. E contaramme, que soubera que entre o cabo das Correntes e de Boa Esperança viam huns animaes que, posto que folgavam com o mar, eram terrestres, e a feiçam da cabeça e cóma era de cavallo, e que comtudo não era cavallo marinho ; e que tinha corno do quai usava abaxandoo ou alçandoo abaxo e acima, e a parte direita e a esquerda, de modo que dizem ser como dedo ; e que este animal pe-

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  1. O sentido não é claro ; parece dizer que compraria o corno do rhinoceronte, se julgasse ser unicorneo.
  2. Plinius, libr. 8, cap. 20 (nota do auctor).


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leja bravamente com o elefante ; e que o fére com o corno, o qual corno he de dous palmos, e dizem ser contra a peçonha : e esta he a fama comum.


RUANO

Dizem delle, que nao querem beber os animaes, até que elle meta o corno na agoa.


ORTA

Nao somente dizem ser bom bebido contra a peçonha, e tem elle esta fama, e disseram pessoas dignas de fé que deram rosalgar a dous cães, e a hum deram dobrada cantidade da peçonha, e a este que a deram dobrada, deram a beber do corno delle raspado, e este viveo ; e o outro morreo, que tomou menos rosalgar a metade. E deste animal nao sey outras cousas, e porém vi já alguns comos destes, e mostravam serem pegados na testa. Prezará a Deos que isto se venha a saber bem ; e que elle descubra o que for mais seu servico ; e nisto que escrevi quis ser mais curto que larguo, porque leixo que dizer aos que melhor souberem (3).


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Nota (1)

O "Cate" de Orta, "Cato" da Pharmacopêa portugueza, substancia mais conhecida pelo nome de catechu, é um extracto da madeira da Acacia Catechu, Willd. (Mimosa Catechu, Linn. fil.), uma arvore bastante commum na India, mais a leste nas terras de Burmá, e por outro lado na Africa oriental ; é tambem obtido este extracto de uma especie proxima, Acacia Suma, Kurz., que se encontra igualmente na India.

— "Cate", a designação empregada por Orta, é a natural orthographia portugueza do seu nome bindustani, que hoje escrevem kat ou kath. Drury diz, que a palavra cate significa arvore, e chu succo, d'onde catechu ; mas não sei se esta affirmação tem fundamento. Duarte Barbosa - como logo veremos - dá á mesma substancia o nome de cacho, que é a designaçâo tamil, canarim (lingua do Canara) e malaya, kashú, ou kachú ; e "cato", empregado em Malaca segundo Orta, é uma simples alteraçio de cate, ou de cacho.


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— Não vejo que o nome da arvore seja "bac chic", como diz Orta ; nem encontro cousa parecida com esta expressão. O nome vulgar da Acacia Catechu é kaira, kayer e outras formas similhantes (Cf. Flück. e Hanb., Pharmac., 213 ; Dymock, Mat. med., 283 ; Ainslie, Mat. Ind., 1, 63 ; Drury, Useful plants, 6; Piddington, Index, 56).

Segundo Duarte Barbosa, o cacho exportava-se no seu tempo principalmente do norte da India, e não era uma substancia muito conhecida. Fallando das mercadorias do reino de Guzerate, ou Cambaya, diz o seguinte :

"e asy outras muytas dragoarias que nós nom conhecemos, e em Malaca e China saom muyto estimadas, e tem grande valia, silicet, cacho, pucho[1], e muyto encenso que vem de Xaer."

Isto concorda com o que diz Orta acerca da sua procedencia de Cambaya, principalmente das terras portuguezas de Damão, Baçaim e Manorá — uma pragana annexa as terras de Baçaim, desde o tempo de Francisco Barreto, ou já antes. E tambem concorda no que diz respeito a ser exportada para Malaca e China, sendo tambem certo, que algum cate ía para a Arabia e Persia, por via de Hormuz, onde era uma mercadoria conhecida. É o que se póde deduzir de uma phrase do Lyvro dos pesos, interessante, porque estabelece explicitamente a identificação do cacho com o cate :

"O baar do cate, que aquy chamão cacho, he em tudo como o arroz, quanto ao peso."

Parece, pois, que então não sabiam fabricar o catechu em Pegú e terras limitrophes, d'onde hoje vem para a Europa a maior parte, porque se assim succedesse de certo não iria de Cambaya para Malaca.

Depois d'estas noticias de Barbosa e de Orta, a droga e as suas qualidades medicinaes caíram de novo no esquecimento ; e quando perto de um seculo mais tarde algum catechu veio do Japão a Europa, deram-lhe o nome de terra japonica, classificando-o como um genus terræ exoticæ. Ainda no anno de 1671, Wedel de Iena discutia a diversidade das opiniões que vogavam acerca da natureza vegetal ou mineral do Catechu seu Terra japonica, tão esquecido ou ignorado andava o que o nosso naturalista havia dito a respeito de sua proveniencia e processo de fabricação.

Este processo não differia essencialmente do que hoje se segue ; e o cate ou catechu era e é o extracto aquoso da madeira da Acacia, concentrado pela acção do calor, e secco ao sol ou ao ar, depois de moldado em fôrmas. Nos livros de Dymock, e de Flückiger e Hanbury se podem ver as variantes do processo, que hoje seguem no Oriente.

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  1. Por erro de imprensa ou copia, vem na edição da Academia escripto cachopucho, em uma só palavra.


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O que era especial no tempo de Orta era a intervenção da farinba de nachani, que misturavam com o succo inspissado para formarem os trociscos ou "chans".

O nachani é uma graminea de grão alimentar, Eleusine Coracana, Gäertn., chamada na India raggi, nagli e nanchni, muito frequente hoje em cultura na Africa oriental, onde os portuguezes Ihe dão o nome de naxenim, frequente tambem na Africa occidental, onde lhe chamam luco, e de cujas curiosas migrações eu já me occupei largamente em outro trabalho.

Voltando, porém, ao cate, podemos notar que ainda hoje é empregado na materia medica da Europa, como uma substancia fortemente adstringente ; e que na India tem usos medicinaes similhantes aos que Orta menciona. Alem d'isso, é largamente usado no Oriente como masticatorio, juntamente com o pán supári (pán o betle, e supári a areca) — exactamente a receita da cosinheira do nosso medico.

(Cf. Duarte Barbosa, Livro, 289 ; Lyvro dos pesos, 22 ; F1ück. e Hanb. l. c. ; Dymock, l. c. ; Plantas uteis da Africa portugueza, 41 a 55).


Nota (2)

Orta engana-se identificando o cate com o lycio dos antigos ; mas, como diz sir H. Yule a proposito d'esta mesma questão, as suas opiniões são sempre dignas de consideração - Orta, whose judgements are always worthy of respect...

Toda a historia do lycio estava no seu tempo muito confusa. Dioscorides, ao tratar do λύκιον, referiu-se evidentemente a duaa plantas diversas, e que elle soube muito bem serem diversas : uma das regiões mais proximas, da Cappadocia e da Lycia, e que modernamente se tem identificado com uma especie de Rhamnus : a outra de regiões mais distantes, dando um producto muito superior, e designada pelo nome de lycio da India, ἰνδικὸν λύκιον. D'esta, que unicamente nos interessa agora, pois a ella se refere Orta, fallaram mais ou menos confusamente Plinio, Galeno, Celso e outros ; e sabemos que dava uma substancia muito apreciada medicinalmente, sobretudo no tratamento das ophtalmias e outras doenças de olhos, vendida por altos preços, e conservada em uns vasos èspeciaes, de que a Pharmacographia transcreve uma noticia interessante. Os arabes antigos tiveram tambem conhecimento da mesma substancia, a que parece chamaram hadhadh حضض (o "hacdadh" de Orta), dizendo Avicenna que era o succo do alfeluzaharagi ("feluzalange" de Orta), o que pouco esclarecia a questão. Naturalmente todos os commentadores, todos os Musas, Sepulvedas e outros se lançaram em conjecturas mais ou menos plausiveis ácerca da natureza do lycio ; e Orta aventou a opinião de que


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fosse o cate, o que não era absurdo, pois o lycio como o cate era o extracto de uma madeira, e se os caracteres da Acacia catechu não concordavam com o que Dioscorides havia dito da arvore do lycio, Orta sabia muito bem que elle se tinha enganado mais de uma vez em pontos identicos. A questão continuou a ficar enredada ; e Sprengel, quando já no nosso seculo publicou a sua edição de Dioscorides, ainda não se pronuncia sobre o que seja o lycio da India. Foi só um pouco depois, que Royle (1833) mostrou dever ser o lycio dos antigos analogo ou identico a um extracto, conhecido nos bazares da India pelo nome de rusot, e obtido de varias especies do genero Berberis, B. aristata, D. C., B. Lycium, Royle, e B. asiatica, Roxb. (Cf. Yule e Burnell, Gloss., 133 ; Sprengel, Diosc., livr. 1, cap. 132 ; Avicenna, II, II, 398 ; Royle em Linn. Trans., XVII, 83 ; Pharmac., 34 ; Dymock, Mat. med., 35).


Nota (3)

Nas notas ao Coloquio vigesimo primeiro contámos já (vol. 1, pag. 320) a historia do rhinoceronte, que Muzaffar Scháh mandou a Affonso de Albuquerque, Affonso de Albuquerque a D. Manuel, e D. Manuel a Leão X ; mas alguma cousa temos a acrescentar sobre o que Orta diz em geral de rhinocerontes e unicorneos.

O nosso escriptor admitte a existencia de rhinocerontes no Bengala, "nas terras que tem os Patanes" — expressão pela qual deve designar os estados afghans da India —, e no "Patane", que seria assim o Afghanistan propriamente dito. Em toda esta zona de leste eram numerosos aquelles animaes — Rhinoceros indicus, e talvez tambem a especie R. sondaicus —, que já então se não encontravam ou se encontravam excepcionalmente na zona occidental. Linschoten diz : India abadam sive rhinocerota non habet, verum in Bengala et Patana reperitur — por India designa a parte mais conhecida, ao longo da costa de oeste.

Orta diz tambem, que "alguns fazem domesticos" ; e esta questão dos rhinocerontes domesticos é um tanto complicada. Gaspar Corrêa, descrevendo uma grande batalha entre Báber e um certo rei da India, chamado Cacandar, batalha que Yule e Burnell dizem não terem podido averiguar qual fosse, mas que é talvez a de Panipát, confusamente envolvida em muitas circumstancias erradas, diz assim, fallando do modo por que estavam ordenadas as forças de Cacandar :

"e diante huma batalha de oitocentos alifantes, que pelejavão com espadas nos dentes e em cima castellas com frecheiros e espingardeiros. E diante dos alifantes oitenta gandas, como huma que foy a Portugal, a que chamarão bichá, que no corno que tem sobre o focinho tinhão ferros de tres pontas com que pelejavvo mui fortemente."


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Diremos desde já, que na relação da batalha de Panipát, dada pelo bistoriador Erskine, o qual segue as Memorias escriptas pelo proprio Báber, se mencionam os oitocentos ou mil elephantes, mas se não diz uma palavra dos rhinocerontes.

A noticia de Gaspar Corrêa, por mais estranha que seja, não é isolada. Fernão Mendes Pinto, fallando de um lago de Chiammay na IndoChina a que já nos referimos em outra nota, affirma que d'ali se tiravam muitos minerios, os quaes "levam mercadores em cafilas de alifantes e badas a os reinos de Sornau, que é o de Sião, Passiloco..." Aqui temos as badas — outro nome dos rhinocerontes —, domesticadas e empregadas nos transportes. E o mesmo Fernão Mendes Pinto, dando a relação de um enorme exercito tartaro, que invadiu a China, diz "...donde partiram com oitenta mil badas, em que vinha o mantimento e toda a bagage". Yule e Burnell, transcrevendo as tres passagens citadas, não contestam a sua veracidade, e contentam-se com lhes pôr um ponto de admiração. Effectivamente, a ausencia de outras noticias, e tudo quanto sabemos do caracter desconfiado, violento e pouco intelligente do animal, levam-nos a acreditar, que os nossos escriptores foram mal informados. Gaspar Corrêa é babitualmente veridico; mas tratava n'este caso de factos succedidos no interior da India, de que recebeu noticias indirectes e confusas ; e Fernão Mendes Pinto, sem merecer a reputação que teve durante muito tempo, era um tanto dado a acceitar, e mesmo a ampliar levianamente, as informações colhidas aqui ou ali. A phrase de Orta é mais acceitavel, e um ou outro rhinoceronte podia chegar a um certo grau de domesticidade (Linsch., Navig., 56 ; Gaspar Corrêa, Lendas, m, 573 ; Erskine, Hist. of Báber, 1, 434 ; Fernão Mendes Pinto, Peregrin., cap. 41 e cap. 107 ; Yule e Burnell, Gloss., 1 e 799).

Acerca de unicorneos é o nosso Orta muito prudente, dando-nos as suas noticias sob todas as reservas. No que lhe disseram da costa de Africa, deve ir envolvido o hippopotamo — posto que elle diga não se tratar do cavallo marinho — com os rhinocerontes africanos, que então deviam ser muito frequentes ao longo d'aquella costa.