Coloquio 2 (Garcia da Orta)
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[I, 23]
Já me parece tempo pêra responderdes ás minhas perguntas, e porque a ordem aproveita muito á memoria será bem começar pello a b c, e alguns nomes que falecerão alembrarmoeis.
Isso que dizeis da ordem do alphabeto acho nam ser bom, e a causa he porque póde acontecer as cousas ditas ao principio serem pouquo proveitosas ou muito notas, ou sem gosto pera serem lidas ; quanto mais que sempre ouvi dizer que os peccados mais graves se havião primeiro de confessar aos confessores, e as milhores rezôes se havião de dizer primeiro quando leião algumas lições, e que quando se havião de pedir algumas cousas, as mais necessarias havião de ser as primeiras.
Antes senhor (salvo milhor juizo) me parece o contrairo em muitas cousas, porque nos principios das orações nam se hão de mover os affectos e vontades tanto como nas outras partes da oraçam, e mais porque o fim fica mais na memoria que as cousas, que primeiro se dixerão, nem os que lêem hão de dizer a doctrina muy sotil no principio, senam prometer de a dizer, pera fazer os ouvintes atentos.
Ainda me nam satisfizestes ao que vos dixe, e he que se este livrinho quizerem alguns imprimir, ou por zombar de mim, ou por descobrir meus erros e minhas mal compostas razões, e lendoo alguma pessoa e nam achando no principio
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cousa de que goste, sem mais esperar razão, dará este livro ao quarto elemento, e dirá em mim mil pragas e vituperios, e, o que pior he, farão contra mim invectivas ; e outros, por me não terem por digno de tanto, farão trovas e outras cousas mais baixas.
As vossas cousas nam tem outro mal pera os mordaces leitores que serem verdadeiras e muitas nunqua sabidas dos fisicos, que de qua forão a Espanha, quanto mais aos fisicos da Europa, porque já perguntey em Espanha a fisicos que qua andarão, e não me deram mais razam que a que lá sabiamos todos, e destes homens alguns erão doctos, senão o tempo que andarão qua trazião mais os pensamentos em enriquecer, que em filosofar; porque, como diz o filosofo[1], que ainda que filosofar he milhor em si que enriquecer, porém que ao necessitado milhor he enriquecer ; e porque estes o serião, quizerão primeiro enriquecer que filosofar; e porque vos tire deste arreceo, digo que este trabalho vosso quero eu pêra mim só, e pêra muito poucas pessoas outras a quem o direy em Espanha (levandome Deus a salvamento), e serão alguns condiscipulos nossos, que vos não pesará de o saberem, e alguns discipulos vossos, tam doctos, que assi vós, como eu, poderemos aprender delles, porque elles se derão pouquo á pratica e muito ás escholas, e vós e eu fizemos o contrairo, e o que me doy mais d'isto he que não tendes vós nem eu mestres ou preceitores a quem eu possa mostrar vossos trabalhos nem em Salamanca nem em Alcalá, porque todos são já mortos e desterrados longe de Espanha : e tornando ás nossas perguntas me diga do aloes os nomes em todas as linguas que sabe e como se faz, e qual é o milhor, porque o desta terra louva muito Plinio e Dioscorides[2].
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- ↑ Aristot. Topic., libro 3 (nota do auctor).
- ↑ Plin., libr. 27, cap. 4 ; Diosc., libr. 3, cap. 21 (nota do auctor).
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Do aloes ha poucas cousas que dizer que sejão notáveis, e porém fazervosey a vontade, e digo que o aloes ou aloa he latino e grego, e os Arabios o chamão cebar, e os Guzarates e Decanins areá, e os Canarins (que são os moradores desta fralda do mar) o chamão catecomer, e os Castelhanos acibar, e os Portuguezes azevre : fazse de çumo de huma herva depois de seco, e he chamada em portuguez herva-babosa, da qual herva ay muita quantidade em Cambaya e em Bengala e em outras muitas partes (i), mas a de Çocotora he muito mais louvada, e he mercadoria pera a Turquia, a Persia e Arabia, e pera toda a Europa ; e por isso o chamam aloes çocotorino ; e dista esta ilha ou está apartada das portas do estreito 128 léguas, por onde tanto se póde dizer da Arabia como da Etiopia, pois nas portas do estreito huma banda he Arabia e outra Etiopia : e não he isto onde se faz cidade, como diz Laguna, senão he toda a ilha, a qual não tem cidades, senão povoações com muito gado ; e não se ladrilha o chão pera colher a lagrima que cáe, porque nem he cidade nem na ilha ha tanta policia, nem se falsifica polla muita abundancia que nella ha desta herva, senão polla pouca curiosidade que os negros desta terra tem em não apartar as hervas que com esta herva-babosa vem misturadas, e por isso hum não parece tam bom como outro : e também não creais que he milhor o de cima que o do meio, e peor o do fundo, nem he cheo de área, si se faz com diligencia, porque todo he bom ; nem se falsifiqua com goma arabica e acacia (como dizem Plinio e Dioscorides), porque ha nesta terra pouca goma e acacia ou, por fallar verdade, nenhuma, segundo mandey saber per pessoas dignas de fé que isto me contarão ; e já pode ser que este mesmo azevre se falsifique em outras terras (2).
Como soubestes que o de Çocotora he melhor, porque alguns escriptores o chamão suco-cetrino ?
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Não faz o nome ao caso.
Como sabeis que sabem descernir hum do outro os Persios, Arabios e Turcos em Ormuz, onde o levão a vender, como dizem ?
Alem da fama comum o soube de hum rico mercador e bom letrado, a sua guisa, que servio de secretario aos governadores, chamado Coje Perculim (3), ao qual como hum dia lhe perguntasse como se chamava em turco, em persio e arabio, me dixe que cebar se dizia em todas estas linguas e, sem lhe mais perguntar, me dixe que o melhor de todos he o de Çocotora, e que o avia em muitas outras partes da India, donde o levavão a Ormuz e a Adem e a Gida, e dahi por terra o levavão ao Cairo, donde o levavão a Alexandria, porto do Nilo, e que facilmente conhecião os mercadores qual era o de Çocotora, e qual o de Cambaya e das outras partes, e que valia o de Çocotora quatro vezes tanto como o das outras partes. E despois disto fui ver ao Nizamoxa, que he um rey dos mais grandes do Decam, chamado o Nizamaluco (4), alem de ser letrado pello seu modo, sempre tem fisicos da Persia e de Turquia, a quem dá grandes rendas, dos quais soube isto mais perfeitamente : e mais me dixerão que se descernia o de Çocotora, porque nelle as partes se juntavão bem humas com outras, e no outro azevre não fazião perfeita mixtão, porque o çumo era de diversas hervas, e que isto era cousa muyto conhecida, e que o próprio rey, seu amo, o tinha sempre trazido de Çocotora, de modo que não são duas, nem tres especias, como dizem os doctores, senão huma só, e isto entendey, senão quereis que o logar varie as especias : somente ay bom e mao, scilicet, sofisticado, de modo que nem as hervas são diversas em bondade, porque a diversidade na bondade não faz que as partes não se misturem bem, pois são de huma mesma especia, e chamarem alguns doctores suco-cetrino não he muito.
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porque não olharão mais que á côr, mas a verdade he que se chama assi.
Pois que diremos a Plinio e a Dioscorides[1] que dizem que o milhor de todos he o da India, e dizem outros que o de Alexandria ou da Arabia ?
A isto vos respondo que não entendais simplesmente que o trazido da India he o milhor, senão acrecentardes que o tragão á India primeiro de Çocotora, porque, como já vos dixe, também levão de Cambaya e Bengala azevre a Ormuz e a Adem, e a Judá (como nós, corrompendo o nome, a chamamos, porque elles a chamão Gida), e com tudo isto sempre o levão destoutras partes, e, como digo, o de Çocotora he milhor, e levão de todo, porque quem diabos compra, diabos vende.
Logo milhor diz Mesué que ha hum trazido de Çocotora, e outro da Persia, e outro da Armenia, e outro da Arabia ?
Não diz Mesué milhor, mas diz menos mal que os outros : porque verdadeiramente o que de qua vay pera Portugal, que eu o vejo todo, he trazido de Çocotora, e quando lá os vossos doctores dixerem de Alexandria trazido, entendey que nos annos passados se levava muita quantidade de drogas a Ormuz e dahi a Baçora, e dahi as levavão a Adem e a Gida, e dahi, por terra, em cáfilas de camelos, o levavão ao Suez, que é cotovelo do mar, e a Alexandria, porto do Nilo, donde vão ter nas galés de Veneza pera se venderem e comunicarem a toda a Europa, e não porque em Alexandria ouvesse azevre pera fazer caso delle (5).
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- ↑ Plin., lib. 24, cap. 4 ; Diosc, lib. 3, cap. 4 (nota do auctor). O cap. de Dioscorides está errado ; deve ser 21, 22 na edição de Sprengel.
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Se não ay em Alexandria azevre, também dizeis que não ha ruibarbo : logo mal dizia aquelle escritor que não faria a huma pessoa purgar nem desopilar quanto ruibarbo ha em Alexandria ?
Entendeo esse doctor quanto ruibarbo vem das outras partes a Alexandria.
Acerca dos nomes estou hum pouco duvidoso, e não de Mateo Silvatico, que o chama saber ou canthar, ou reamal, porque este podia errar, pois não era arabio ; mas que diremos a Serapio, que, sendoo, o chamou saber ?
Não O chamou senão cebar, e depois, corronpendose por tempos o nome, se chamou saber : por onde não tem culpa senão o traductor, ou os tempos, que gastão tudo ; mas no arabio está cebar.
Acerca dos indios he usado ?
Ácerca dos fisicos da Persia, Arabia e Turquia se usa desta mezinha, porque sabem elles de cór Avicena, a que chamão elles Abolahi e a seus cinquo livros Canum, e sabem Rasis, a quem chamão Benzacaria, e a Halirodoam e a Mesué, posto que não he este de que usamos, e tambem tem todas as obras de Hypocras e Galeno, de Aristoteles e de Platão ; posto que as não tem tão inteiras como na fonte grega (6) : e os fisicos gentios da India também usão delle em purgas e lombrigas e coliros, e tambem quando quierem encarnar algumas chagas, e tem pera isto nas suas boticas huma mezinha chamada mocebar, feita de azevre e mirra, á qual elles chamam bola, e desta usam muito para curar cavalos, e para matar os bichos das chagas, e por tanto nam he muito chamarse acerca de nós o aloes ruym
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cabalino, como escreve um moderno doctor, dizendo que o mais ruym se gasta acerca dos albeitares ; mas de meu voto he que nem pera curar bestas nem homens se gaste nem se use do aloes chamado cabalino, senão do çocotorino ; de modo que o que diz Serapiam, por autoridade de Alcamzi, se deve entender, que pera albeitaria e chagas se póde usar com menos damno do cabalino ; e mais vy qua usar a um fisico gentio do gran Soldão Badur, rey de Cambaya, por mezinha familiar e benedicta, tomando talhadas das folhas da herva-babosa cozida com sal dentro nellas, e deste cozimento dava a beber oito onças com que fazia quatro ou cinquo camaras, sem molestia nem damno algum a quem o tomava. E aqui n'esta cidade de Goa tomão desta herva pisada e misturada com leite e dão a beber aos que tem chagas nos rijs ou na bexiga, ou mejão matéria por alguma outra maneira : e he cousa muito boa pera guarecer asinha, e já nós alguns tomámos desta mezinha e achámos nos bem della. E nós também usamos do azevre nas quebraduras das pernas das aves, cousa bem usada dos cetreros (7), e qua na India pera madurar os fremões, por isso nam parece dizer bem Mateolo Senes, o qual diz que a herva he mais pera ver, que pera uso de fisica.
Todas essas cousas que dizeis não carecem de razam, e porem me dizey se probastes herva-babosa, e se vos amarga e cheira com cheiro forte ?
Lendo em Antonio Musa e em outros modernos por dizerem que o amargar falecia á herva-babosa de nossa terra, provey esta muitas vezes, e achava muyto amargosa, e quanto era mais perto da raiz amargava mais, e nas pontas de cima sem nenhuma amargura, e com horrido cheiro em toda, de modo que o que diz Antonio Musa que o de Çocotora he mais amargo, he falso ; porque esta herva da India já a provey, e a de Çocotora mandey provar, e todas
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amargam muyto : a de Espanha nam provey, se vos Deus levar a salvamento, tudo podeis probar. E mais vos digo que achey em o Silvatico e em o Plateario, que todalas cousas amaras, quanto mais amaras, tanto sam melhores, excepto o aloés: e António Musa parece que sente o contrairo, e a mim me parece que diz melhor o Musa, por que o sabor amargoso preserva de putrefaçam, e faz outras operações muyto boas.
Tirayme de huma duvida, se as mezinhas que levam aloés se ham de tomar em jejuum, se sobre comer, e, se sobre comer, se tardará muyto o cibo sobre ellas?
Nam me pergunteis isso pois o sabeis lá milhor todos que eu qua hum só.
Todavia quero vosso parecer, e saber a pratica que usais. ORTA Galeno manda dar 5 pirolas tamanhas como grãos de comer, e desta maneira he bom tomado pêra paixões da cabeça, e Plinio* diz que he muito boa mezinha, depois de bebida, pouco espaço, se tome cibo sobre ella, e ha de ser pouco e bom. Esta também é muito boa pratica e usada dos físicos mouros d'esta terra, porque, como o aloés he mezinha débil, nam obrará se depois a natureza nam for fortificada com hum pouco de comer muito nutritivo e pouco em quantidade, como dixe, porque o possa digerir, e, fortificada, faça melhor evacuação. Paulo diz que se ha de tomar em jejuum, e reprende aos que a dão depois de comer, porque diz que corrompe o comer. Cada hum destes tem por si razões e textos e todos se podem concordar bem, e porque he questão comum se o cibo se ha com a mezinha de
- Galen. ad Pat., cap. 5; Plinio, libr. 27, cap. 4 (nota do auctor).
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misturar ou não: e pois o sabeis melhor que eu, escusado he falar nisso muito.
Nasce mais em logares marítimos, como diz Dioscorides?
Eu andei polo sartam desta índia, mais de duzentas legoas de caminho, e em todos os logares vi esta herva-babosa.
Da goma delia me dizei.
Nam tem goma, senam algumas vezes, polas folhas, chora alguma agua viscosa, de que se nam usa, nem faz caso.
Diz Ruelio que as pirolas de Rasis, que se dão na peste, compostas por Rufo, levão aloés e mirra, amoníaco, temiama e vinho; e diz o Ruelio, que porque causa estes Maumetistas havião de tirar o amoníaco e temiama e vinho, e haviam de acreçentar mais açafram?
Nam vos queria ver tam affeiçoado a estes escritores modernos, que por louvar muyto aos Gregos dizem mal dos Arábios e de alguns Mouros naçidos na Espanha,. e de outros da Pérsia, chamando-lhes Maumetistas bárbaros (que elles tem por pior epíteto que quantos ha no mundo), em especial os Italianos; como que os Gregos, não sam os que agora chamamos Rumes, e os Turcos, a qual gente, tam crua, e cuja e mal acustumada, persegue ao presente mais a christandade que outra alguma*: e por tanto vos digo que eu não nego a mezinha de Rufo ser a que elles dizem, e ser muito boa, mas digo que as pirolas de Rasis (de que usamos) são * Preferimos conservar a phrase, incorrecta e pouco clara, a tentar a sua reconsiruccão.
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32 Colóquio segundo muyto boas e por muytos esperimentadas, e o açafram se põe nellas por ser muyto cordial e abridor, e por outras virtudes muytas que tem.
Parece ser que fazeis deferença entre Rumes e Turcos, e eu tive sempre que senificavam huma mesma cousa estes nomes?
Posto que a questão não he medicinal vos respondo que sam muy difterentes, porque os Turcos são os da província de Natolia (que antes se dizia Asia-menor), e os Rumes são os de Constantinopla e do seu emperio.
Gomo sabeis isto, por livro, ou por volo dizerem algumas pessoas?
Muytas vezes perguntava, andando nas guerras destes reis da índia, a algum soldado branco se era Turco, e respondia que não, senão que era Rume; e a outros perguntava se erão Rumes e respondiãome que não, senão que erão Turcos: e perguntandolhe qual era a deferença que havia antre hum e outro, diziãome que eu a não podia entender, porque não sabia os nomes das terras, nem a lingoa mo sabia dar a entender. E achandome em casa daquelle excellente varam Martim Affonso de Sousa (a quem eu servia) me amostrou a Platina, onde estava lendo na vida de Sam Silvestre, onde achámos escrito que, quando Constantino, leixando Roma ao Papa, se foy a Constantinopla, lhe foy dado previlegio que ella se chamáse Roma, e os dessa terra se chamasem Romeos, e diz o Platina que oje se chamam assi (8).
Muyto folgo de ouvir estas cousas, ainda que não sejam de física: mas, tornando ao aloes^ me dizei que respondere mos a Menardo e a outros modernos, que reprendem a Mesué e Serapiam e Aviçena, porque dizem que abre as veas
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Do Aloés 33 e que he máo para as almoreymas ; e porque dizem estes Arábios que, misturado com mel, purga menos-, e porque afirmam ser menos nocivo ao estômago que outras mezinhas solutivas, porque Menardo e estoutros dizem que não tam somente nam abre as almoreymas, antes as cerra, e que ao estômago não se pôde dizer que he menos nocivo, antes lhe faz muyto bem, e não lhe causa damno algum, e que, junto com mel, he mais solutivo que as outras mezinhas solutivas. As primeiras cousas provao por muitas auctoridades de Galeno e outros muytos, e a segunda provão, por o mel ser solutivo, dizendo que dous solutivos purgão mais que hum.
Já vos dixe que nam me obrigava a vos responder a questões, que sabeis melhor em Espanha, lendo muitos que escrevam cada dia e praticando e conferindo com muitos físicos letrados, que eu qua, nam sendo aconselhado com alguém, por falta que elles e eu temos de livros. E porém respondendo o primeiro, vos digo que António Musa fala neste caso como homem sem paixão, porque elle não fez homenagem a algum mestre e concede ser verdade o primeiro, que diz Mesué, que abre as almoreymas, e que assi o esperimentou muitas vezes*, e eu também digo, que já o esperimentey muytas vezes, causaremse grandes dores com fluxo delias. Tudo isto pode fazer o aloés por sua amargura, abrindo as veas, estimulando a virtude espulsiva-, e deste modo purga o fel do animal posto na barriga e no ombrigo, como dizem Dioscorides e Serapiam*, e, ao cerrar das veas, que provão por autoridade, respondem com lacob de Partibus, que restringe por fora e abre por dentro tomado^ e isto tem muitas mezinhas, que, tomadas por dentro, tem huma operaçam, e, aplicadas por fora, tem outras, como a ceboUa que, por dentro, mantém, e por fora faz chaga ulcerando; e o segundo, que he reprehendido Mesué por dizer,
- Dioscorid., ubi sup. ; Serap., cap. 201 (nota do auctor).
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3 34 Colóquio segundo que purga menos com mel, vos digo que, pois ambos sam solutivos, scilicet, o md e o alocs, o mais solutivo, que he o aloés, he remetido e enfraquecido do menos solutivo, que he o 7nel: e ao terceiro, em que reprendem a Mesué, porque diz que he menos nocivo ao estômago sendo confortativo do estômago, isto digo que se ha de entender que conforta o estômago por acidente, a que os físicos chamão de per acidens^ scilicet, tirandolhe os máos humores do estô mago sem nocumento algum ou, ao menos, com pouquo; e d'esta maneira se hão de entender as auctoridades alegadas por Menardo, e os outros modernos.
Em todas cousas que dixestes me satisfizestes muito bem, e muyto mais no que dizeis que, assi como nas primeiras qualidades, que sam quentura, frialdade, humidade, sequura, o remiso em grado, que he menos quente, remite e enfraquece ao mais intenso em grado, que he mais quente: assi nas segundas e terceiras qualidades, que sam purgativa ou diurética (que he fazer ourinar), o mais forte e intenso, scilicet, que he mais purgativo, se he junto com outro menos purgativo, he enfraquecido do menos purgativo, e assi o aloés mais purgativo, misturado com o mel, que he mais fraco solutivo, faz que tudo seja menos solutivo. Daqui vem que purga hum homem mais com dez grãos de escamonea sós, que com cinquo dragmas de solutivo e uma onça de cassia-Jistola, e huma dragma de ruibarbo, onde entra mais escamonea que os doze grãos: e isto esperimentey eu já muitas vezes, e nam sey dar outra razam senam essa que me dais. E agora me dizey se sabeis se ha aloés metalUco ao redor de Jerusalém?
Já perguntey isto a alguns judeus que a esta terra vieram, e diziam serem moradores em lerusalem, e alguns erao filhos de fisicos, e outros erão boticairos, e todos me disse ram ser isto cousa falsa e nunqua achada em toda Palestina (9) \ e por aqui faço fim ao aloés, se disto sois servido.
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Do Aloés 35
Antes me fizestes no passado muita merce \ e quero vos agora perguntar huma duvida que tenho de como tomão as pirolas e as purgas liquidas nesta terra, e quanto tempo estão sem comer sobre ellas; e isto por ver se os avicenistas, que nesta terra curam aos reys, tem o custume que nós lá temos em Espanha.
Digo que as pirolas tomão pclla maneira que as nós tomamos, e as purgas liquidas tomão as pella maneira que as nós tomamos, scilicet, em rompendo a alva do dia, e estão sem comer, nem beber, nem dormir cinquo horas, e se nestas nam purgão, tomão pêra confortar o estômago, per regra de Aviçena*, duas dragmas de almécega delidas em agoa rosada, e esfregãolhe o ventre com fél de vaca, e põelhe pannos molhados nelle sobre o umbrigo, para citar a operaçam e estimular a virtude expulsiva, se ha disso necessidade alguma; e se purgar muyto bem, passadas estas cinquo horas, bebem três onças de caldo de galinha muyto bem temperado e outra cousa nam comem, e dormem algum espaço, e bebem alguma pouca quantidade de agoa rosada, e acabado de dormir purgão muyto bem; mais porque di zem que se fortificou a virtude e natureza com o caldo e sono e agoa rosada, e que se fora muito o comer, que se impedira em digerir o comer, e não purgara tanto. E perguntandolhe se faziam assi a todos os que purgavam, diziam que esta era a pratica comum dos fisicos letrados, e para isto não alegavam texto algum.
Elles tem muyta razão no que fazem e praticam, porque o fel he solutivo per fora mordicando a virtude expulsiva, e em nam comer galinha he texto expresso de Aviçena**,
- Avie. 4. primi. (nota do auctor).
"it Avicen. 228, trata. 2., cap. 23 (nota do auctor).
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36 Colóquio secundo donde diz que convém áquelle que quer tomar mezinha, que a tome muyto pella manhaa e tarde o comer, e, passadas três horas, quatro onças de pão com vinho e pouca agoa, e seis horas despois entre no banho, e saiase delle e este quieto, e despois lhe dem a comer aquillo que lhe convém: este he o texto tornado em lingua portugueza, ainda que as derradeiras palavras estão na tradução do Belunense: por tanto não tem esses físicos mouros esse custume sem autoridade, nem carece de razam sua obra, posto que Mateus de Gadi expõe esse texto doutra maneira, e applicao somente à ciática-, porém (salvo milhor juizo) em muytas enfermidades se pôde applicar. E do banho, que diz o texto, fazem o?
Si fazem, mas não em o mesmo dia, senão em outro dia despois, o qual banho he de preceito aos Bramenes e Baneanes, e a todo o Gentio, que nenhum dia comão sem lavar o corpo primeiro, e os Mouros lavamse, estando sãos, ao menos cada três dias (lo).
Porque tomaste o cabo do texto emmendado pelo Belunense, vos pergunto se achaste lá verdadeira essa traduçam ?
Eu quis experimentar isso muytas vezes que leia o texto pola traduçam comum, tendo Aviçena na mão em arábio: nam consentião com o que eu dizia, e, como dizia pello texto emendado com as correições do Belunense, diziamme que assi estava lá (n). E porque se faz horas de comer, nisto não falemos mais, e acabado o jantar falaremos do Ambre.
Nota (i)
O aloés, como todos sabem, é o sueco concreto de diversas espécies do género Alõe da familia das Liliacece. Orta conhecia sem duvida varias d'estas espécies; mas nem as distinguiu, nem o podia fazer, pois
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Do Aloés 37 a sua distincção não foi muito clara até aos últimos tempos. Segundo informações modernas do sr. W. Dymock, a droga prepara-se na índia com a espécie Alõe abyssinica, Linn.; e na ilha de Socotora, e talvez outras regiões próximas, com a espécie Alõe Perryi, Baker (Cf. The vegetable matéria medica of Western índia, p. 823, 825, 2** edition, Bombay, i885).
Pelo que diz respeito aos nomes vulgares é o nosso auctor bastante exacto
—Os conhecidos nomes, grego áXoióí e latino alõe, parecem derivar do syriaco alwai, e foram provavelmente introduzidos pelos mercadores, que em tempos antigos traziam esta droga do Oriente para a Grécia (Cf. Sprengel, Dioscorides, :i, 5o3, Lipsiae, 1829; Clusius, Exoticorum libri decem, p. 248, i6o5).
—«Cebar» é a transcripção correcta para o nosso alphabeto do arábico j^^ do qual, junto ao artigo, j-^i, aç-cebar, veio a palavra hespanhola acibar, e as antigas designações portuguezas a^ebre e a^evre (Cf Dozy, Glossaire des mots espagnols et portugais derives de 1'arabe, 35, Leide, 1869; Yanguas, Glosaria, 29, Granada, 1886; Fr. João de Sousa, Vestígios, Lisboa, i83o, a p. 84, salva a etymologia).
—«Catecomer» é uma d'estas transcripções approximadas e de ouvido —como Orta as fazia muitas vezes —de um dos antigos nomes indianos da planta Ghrita Kiimarf, do sanskrito ^PTÍTT KiimãrT (Cf. Whitelaw Ainslie, Matéria indica, 11, i6g, London, 1826; Dymock, 1. c). —«Areá» está de certo muito alterado, mas pôde talvez prenderse a elwa e elia, nomes hindis e bengalis da droga, usados também em Bombaim (Cf Dymock, 1. c).
Nota (2)
A droga proveniente da ilha de Socotora foi celebre desde tempos muitíssimo remotos, se acreditarmos em uma lenda persistentemente contada pelos escriptores arábicos. Maçudi, escrevendo pelo anno 332 da Hijra (943 J. C.) repete uma noticia, dada já no século anterior pelos dois conhecidos viajantes mahometanos, dizendo que o grande Alexandre, por conselho do seu mestre Aristóteles, havia estabelecido n'aquella ilha uma colónia de gregos, com o fim especial de cultivarem a planta que produzia a famosa droga; esta colónia prosperou e abraçou mais tarde o christianismo. O geographo El-Edrisi (i 154 J. C.) dá-nos a mesma versão com ligeiras variantes. Sem acceitarmos esta informação em todas as suas partes, devemos no emtanto admittil-a, como prova da existência de um antigo fundo de população grega na
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38 CoIoljuío segundo ilha, e sobretudo da nomeada que já então tinha o aloés d'ali (Cf. Maçudi, Les Prairies d'or, iir, 36, trad. de B. de Meynard et P. de Courteille, Paris, 1 861-1877; Géographie d^Edrisi, i, 47, trad. de A. Jaubert, Paris, i836; H. Yule, The book of ser Marco Polo, ir, 400, 1^ edition, London, 1875; Flora dos Lusíadas, 89, Lisboa, 1880).
No século de Orta, o aloés da ilha de Socotora continuava a ser considerado o melhor, sendo geralmente chamado socotorino. Thomé Pires, escrevendo a El-Rei D. Manuel (i5i6), dizia: que nascia «o muito estimado na ilha de camatora« (Socotora); que a baixo d'este estava o das «nossas partees» (Hespanha); e que o da índia era muito mau, «que nom vali nada». Parece, porém, que o nome de socotoririo se dava algumas vezes ao aloés de boa qualidade, embora não viesse da ilha. No Lyvro dos pesos, diz António Nunes, que se pesava em Ormuz o «azevre çacatorino de sacatora» por um certo modo, e o «azevre sacatorino de dio», isto é, da índia, por um modo diverso. Em todo o caso o primeiro era o mais estimado (Cf. Carta de Thomé Pires, na Gaveta de pharmacia de P. J. da Silva (i86õ), p. 41; Lyvro dos pesos da Imdia, 8 e 11, nos Subsídios de Felner, Lisboa, 1868). Nas suas correcções a Laguna, Orta falia com bastante conhecimento de causa. Socotora não era cidade, nem tinha cidades; e—segundo referem Duarte Barbosa e Gaspar Corrêa—os habitantes da ilha, conservando uns leves vestígios de christianismo, mas sujeitos aos árabes de Fartak, foram encontrados pelos portuguezes em um estado quasi selvagem. Também a asserção de Laguna, de que se ladrilhava o chão para colher as lagrimas que caíam, não parece ser exacta. De resto, esta asserção era uma simples reminiscência de Plinio: ergo pavímentandiim iibi satã sít, censent, iit lacryma non absorbeatiir (xxvn, 5). E certo, todavia, que a cultura foi antigamente bastante cuidadosa; e o viajante Wellstead ainda viu em Socotora (i833) os restos dos muros, que em tempos remotos cercavam as plantações de Alõe (Cf. Livro de Duay-te Barbosa nas Not. para a hist. e geogr. das nações ultramarinas, 11, 263, Lisboa, 1867; Lendas da índia por Gaspar Corrêa, i, 684, Lisboa, i858; Fliickiger e Hanbury, Pharmacographia, 618, London, 1874).
Nota (3)
Este Khuája Perculim foi um dos primeiros conhecimentos que Orta fez no Oriente. Chegando á índia em setembro do anno de i534, o nosso auctor encontrou-se com elle logo em dezembro, em Baçaim, quando Bahádur Schah cedeu aquellas terras a Nuno da Cunha. Do tratado de cedência se vê, que estavam presentes «coje perculim, mouro parsio, e marcos fernandes, que serviao de linguoas» (Cf. Felner, Subsídios, i38; Garcia da Orta e o seu tempo, 92).
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Do Alocs 39 Nota (4)
Sobre o Nizamaluco vcjam-se as notas ao Colóquio x c outros.
Nota (5)
O nosso escriptor fez n'esta passagem, e já na pagina anterior, uma certa confusão entre os dois caminhos geralmente seguidos pelos mercadores, a qual em parte emenda em um dos Colóquios seguintes. Um d'esses caminhos era o da navegação por Hormuz e Golfo Pérsico até Bassora, d'onde as caravanas tomavam para o norte, em direcção a Trebisonda, ou a Constantinopla; ou seguiam por Damasco aos portos do Mediterrâneo, Acra, Beyrut, Tripoli da Syria e outros, parte dos quaes Orta conhecia e menciona n'este ou nos seguintes Colóquios. O outro caminho era o da navegação pelo marVermelho a Suez, d'onde as mercadorias seguiam em cáfilas para o Cairo, descendo depois o Nilo até Alexandria. Os portos de escala mais fi-equentados n'esta ultima navegação eram Aden, fora do estreito, e Djidda na costa*da Arábia, que os nossos portuguezes chamavam geralmente Judá, e Orta chama Gida. Este era um ponto importante que Lopo Soares pretendeu tomar; e ainda no século passado, quando Niebuhr o visitou, havia ali um notável movimento commercial. A confusão de Orta deve resultar mais de inadvertência e da sua habitual desordem de redacção, do que de ignorância, pois ambos os caminhos eram bem conhecidos dos portuguezes (Cf Gaspar Corrêa, Lendas, 11, 494; Niebuhr, Voyage en Arabie, i, 217, Amsterdam, 1776; João de Barros, Ásia, i, viii, i; António Galvão, Tractado dos diversos e desvairados caminhos, etc, Lisboa, i563).
Nota (6)
Os Hakims, ou médicos mussulmanos, da corte de Ahmednagar, conheciam naturalmente as obras dos seus celebres correligionários Abu Ali Huçein ben Abdallah bcn Sina, Abu Bekr ben Zakaria er-Rasi e Ali ben Redhwan; e familiarmente chamavam ao primeiro Abu Ali, e ao segundo Ben Zakaria.
A phrase de Orta sobre Mesué é um tanto obscura. Posto que existissem dois Mesués, não é provável que os Hakims se servissem das obras do primeiro, das quaes—ao que parece—só escaparam fragmentos. Deviam antes possuir as de Maswijah el-Mardini, o mesmo que Orta conhecia e foi celebre em todas as escolas da Europa. As diflferenças, notadas por Orta, deviam pois ser simples discrepâncias entre
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40 Colóquio segundo os códices arábicos e as versões ou compilações latinas. Isto é tanto mais provável, quanto a personalidade d'este Mesué de Maridin é um tanto nebulosa, e a genuinidade das obras publicadas sob o seu nome pôde levantar algumas duvidas. Quanto ao conhecimento das obras gregas que os Hakims possuiam, resultava muito naturalmente das antigas versões syriacas e arábicas d'aquellas obras, feitas sobretudo nos reinados dos khalifas Harun er-Raschid e Al-mamun (Cf. Assemani, Bibliotheca orientalis, iii, 5oi e 504; Ludwig Choulant, /íí7?2íf^z<c/z des bilcherkunde filr die alteren Medicin, 35i, Leipzig, 1841; Garcia da Orta e o seu teynpo, 241 e 333).
Nota (7)
Os cetreiros ou falcoeiros usavam diversos medicamentos nas quebraduras das pernas dos falcões. Fernandes Ferreira dá a fórmula de um emplastro, composto de «incenso, almecega, sangue de drago, pedra sanguinha e farinha de triguo», tudo isto batido com clara de ovo; e também a de uma «solda»,, em que o principal ingrediente era a «itiumia que tem os boticários». Vemos, pela auctoridade de Orta, que o aloés entrava também na composição d'estes medicamentos; e era natural que assim fosse, pois o consideravam excellente para «encarnar chagas» (Cf. Diogo Fernandes Ferreira, Arte da caça de altaneria, 69, V., Lisboa, 16 16).
Nota (8)
É curioso que o livro citado por Orta (Platina; de vitis pontijicum historia) seja exactamente aquelle em que Diogo do Couto procurou também a explicação do nome de Rumes. Este nome teve um destino singular. Os primeiros mussulmanos deram em geral o nome de Rúrni aos christãos, por isso que estavam principalmente em contacto com os súbditos do império romano do Oriente; e, quando mais tarde distinguiram com o nome de Farangi os christãos do Occidente, conservaram o de Rúmi aos gregos e outros byzantinosi. Vindo os turcos a occupar as provincias orientaes d'aquelle império, passou para elles o nome de Rúmi, de modo que um antigo nome dos christãos passou a designar os seus mais encarniçados inimigos. Onde Orta —e também Coulo— está enganado, é em excluir do nome de Rumes os turcos da ' E continuaram a applical-o aos do Occidente, por exemplo, aos da Hespanlia ; vejam-sc vários casos d'esta applicação em Dozy, Recherches siir iliisloirc cl la littérature de l'Espagne
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Do Aloés 41 Anatólia ou Ásia menor. Foi justamente ali, que os turcos seldjukidas estabeleceram o império de Rúm, sultanato de Rúm, ou Rúmestan, cuja capital era em Iconium, a moderna Kuniah. No tempo de Orta tudo isto pertencia á historia; os turcos ottomanos tinham substituido os turcos seldjukidas, e occupavam Constantinopla e as suas províncias asiáticas, a cujos habitantes se dava em geral o nome de Rumes (Cf. Diogo do Couto, Ásia, iv, vai, 9; Amari, Diplomi arabi, citado por Yule, Cathay and the way thither, 427, coll. Hakluyt, 186G; Yule, Mírco Polo, I, 46; veja-se também H. Yule e A. Burnell, Glossary of anglo- indian colloquial words, London, 1886, na palavra Room).
Nota (9)
Esta passagem, em que Orta toma a liberdade de emendar Plinio, mas sem o citar, valeu-lhe nada menos de duas correcções: uma de Clusius; a outra d'aquelle anonymo arabista, commentador dos Colóquios, que nós hoje sabemos ter sido o celeberrimo erudito José Scaligero (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, 242).
Clusius adverte (Exotic, i5i), que Plinio não affirmou a existência do aloés metallico; mas unicamente disse, que alguns a mencionavam. Eífectivamente Plinio diz: Fuere qui traderent in Judcea super Hierosolyma ?netallicam ejus naíuram...; mas logo accrescenta: sed nulla magis Ímproba est, por onde parece confirmar a noticia (Plin., xxvii, 5).
Scaligero (Exotic, 244) defende Plinio, dizendo que elle tem rasão, se o entenderem bem, pois se refere ao aloés encontrado nos cadáveres desenterrados, e que haviam sido embalsamados com aloés e myrrha, uma practica seguida na Judéa, e mencionada, por exemplo, no evangelho de S. João (xix, Sg). A defeza de Scaligero é infeliz : primeiro, porque não é nada claro, que Plinio se queira referir á tal substancia extrahida dos cadáveres—a chamada mumia^; segundo, porque o aloés empregado n'estes casos não era, ao que parece, aquelle de que tratamos, mas uma substancia muito diversa, o lignum aloés, de que fallaremos adiante. Em todo o caso, Orta disse simplesmente, que lhe não constava existir aloés metallico, e disse muito bem.
' O nosso Thomé Pires dá uma descripçáo curiosa d'esta celebre e nojenta droga : «he hua umydade dos corpos mortos d'esta maneira: como ho homem morre, alimpano das tripas e fresura, e lançamllie dentro mirra e aloees, e tornamno a coser, e meteno asy em sepulchros com furacos; esta mistam com a umydade do corpo corre e apanha-se, e este liquor se cliama momia>.
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42 Colóquio segundo Nota (io)
Seria interminável e pouco interessante a discussão de todas as indicações sobre a therapeutica do aloés, espalhadas por este Colóquio em maior ou menor desordem. Bastará notar, que as idéas de Orta, sobre o caracter estomachico do aloés; sobre a sua acção purgativa; sobre a sua influencia como agente de fiuxo sanguíneo; sobre o seu uso tópico externo, se não afastavam das que corriam no seu tempo e —em parte— ainda são admittidas no nosso (Cf. para mais indicações, Garcia da Orta e o seu tempo, p. 3 1 1 e 3 1 2)
As praticas locaes de medicina hindu, a que elle se refere; por exemplo, o uso da polpa das folhas frescas que viu empregar como «mezinha familiar e benedicta», por um «físico gentio» (isto é, por umVydia, e não por um Hakim) de Bahádur Schah, são confirmadas pelos livros modernos. Parece que os antigos hindus não conheciam a droga, tal qual hoje se prepara, mas empregavam directamente a planta; e Ainshe diz-nos, que modernamente a polpa das folhas é receitada como uma medicina refrigerante pelos médicos indianos, native practitioners (Cf. Dymock., Mat. med.^ 823; Ainslie, Mat. ind.^ 11, 169). Orta accentua claramente n'este Colóquio duas feições importantes do seu livro, ás quaes já me referi em outro trabalho, e que, portanto, só apontarei de passagem. Em primeiro logar, a sua repugnância a tratar as questões puramente medicinaes. Por duas ou três vezes declara, que se não obriga a responder a questões mais sabidas na Hespanha do que na índia. O seu livro não é de medicina, é de simples e drogas; ou —como hoje diríamos— de pharmacographia. Em segundo logar, mostra bem que se não deixa levar pelo exclusivismo da escola hippocratica. Nem elle, que todos os dias no Oriente verificava o valor das observações feitas pelos árabes, lhes podia chamar «maumetistas bárbaros», como lhes chamavam na Europa os doutores hippocraticos da Renascença. E esta segunda feição do livro resulta muito naturalmente da primeira. Foi precisamente porque Orta se dedicou de um modo quasi exclusivo ao estudo da matéria medica, que elle não pôde deixar de reconhecer a superioridade dos árabes. Em medicina pouco teria a aprender com elles; mas o caso era diverso quando se tratava do conhecimento dos simples e drogas (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, 304, 3o5).
Nota (ii)
Orta refere-se ás edições latinas de Avicenna, as quaes se fizeram primeiro pela versão de Gerardo Cremonense, depois com as emendas
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Do Aloés 43 e addiçóes de André Bellunense; e esta passagem é interessante, como sendo uma das que nos dão a medida dos seus conhecimentos em lingua arábica (Cf. Garcia da Orta e o seu tempo, 243).
O nosso naturalista é especialmente pródigo de erudição em todo este Colóquio: cita Hippocrates, Aristóteles, Platão, Galeno, Dioscorides, Plinio, Paulo de Egina, Mattheus Platearius, Mcsué Júnior, Avicenna, Serapio, Rhazés, Haly Rodoam, Mattheus Sylvaticus, Mattheus de Gradibus, Jacob de Partibus, André Laguna, Matthiolo, João Ruellio, João Manardo, António Musa e Platina.