Coloquio 39 (Garcia da Orta)

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Coloquio 38
Garcia da Orta, Coloquios dos simples, 1563
Coloquio 40


COLOQUIO TRIGESIMO NONO
DO NEGUNDO OU SAMBALI



INTERLOCUTORES
RUANO, ORTA, SERVA


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RUANO

Guabam muyto estas vossas negras hum arvore, que dizem que nós lavamos aqui sempre os pés com o cozimento delle, e dizem que aproveita pera tantas cousas que estou pasmado.

ORTA

Pareceme que nesta orta está : venha qua a negra que o gaba. Moça ?

SERVA

Que manda vossa mercê ?

ORTA

Que arvore he esse que gabas muyto ?

SERVA

He negundo.

ORTA

He huma arvore que tem mais propriedades ou milhores que pode ser ; e quanto mais lhe tiram os ramos, tanto crece mais. He mézinha muito resulutiva, e metiga o dor em grande maneira, quando não ha chaga, scilicet, o lavatorio do cozimento desta erva quente, ou a mesma erva quente pisada, posta emcima, ou frita em azeite e posta emcima. E verdadeiramente que deita a perder os fisicos ; porque não entrais em casa a curar cousa alguma de dor, que nam saia loguo de travez alguma pessoa que digua : pondelhe negundo cozido, ou torrado, ou frito em azeite. Tambem dizem muytos homens que o puseram emcima de chagas muido em tal


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maneira, e que em huma noite degiriam a materia de tal maneira, que ficava sem dor ; e dahi por diante continuando, as folhas a modificavam em tal maneira que cerava [1] de todo ponto ; e isto contam muitas pessoas e não huma só. As mulheres o tem por muyto bom pera preparar a madre pera conceber, e dizem que bebido faz este mesmo efeito. Eu julgoa por milhor mézinha, e mais forte que macela ; tem muyto bom cheiro ; mastigando queima hum pouquo, como masturço, por onde he manifesto ser de compleiçam quente. Chamase este arvore comummente negundo, e alguns no Balagate o chamam sambali, e em Malavar lhe chamam noche, e usam os Malavares disto em caril. A folha delle he similhante al do sabugueiro, farpada como elle, e velosa pollas costas hum pouco ; e o arvore he tamanho como hum pecegueiro, deita flores brancas e algum tanto pardas, e huma semente preta, tamanha como pimenta. e alguma cousa maior. Ouve hum boticairo nesta India, homem velho em quem confiava muyto hum governador casto e vertuoso, e querendo reprimir os estimulos da carne, perguntou áquelle boticairo se avia alguma cousa pera isso ; o boticairo lhe dixe que si, e que era hum arvore que chamavam agnocasto ; e fez usar este governador deste negundo, o quai usou delle muytos dias, porque não faltou hum fisico que dixe que era verdade, que aquelle era o arvore chamado agnocasto ; e quando me foy dito isto, oulhei o capitulo do agnocasto, e cotejeio com o arvore chamado negundo, e acheio tam deferente, que não pudia mais ser ; entonces dixe que não era negundo, agnocasto, e nam quis afirmar isto sem ver o livro, porque eu nam conheço agnocasto, nem avia boticairo aqui, que o conhecese. Despois veo a esta terra hum fisico letrado e homem que fala verdade em seus ditos [2], e disseme que em Portugal avia ao presente muytos agnocastos, e que eram bem deferentes destes na folha, e em tudo.

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  1. Pôde entender-se, que a chaga cerrava ou sarava.
  2. O licenciado Dimas Bosque (nota do auctor).


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NOTA (1)

Duas especies do genero Vitex, da familia das Verbenaceæ, Vitex Negundo, Linn., e Vitex trifolia, Linn., gosam na medicina hindu de quasi igual reputação, e são designadas pelos mesmos nomes vulgares, ou por nomes muito similhantes, de modo que não é facil saber a qual d'ellas Orta se quiz referir, ou se abrangeu ambas sob a designação de « negundo », o que julgo mais natural :

— este nome, « negundo », prende-se ao sanskrito nirgundi e outras fórmas similhantes, que parecem applicar-se as duas especies (Cf. Ainslie, Mat. Ind., II, 237, 252 ; e Amarakocha, 94, ed. Lois. Deslongchamps).

— « sambali » é o nome vulgar hindustani شنبالي, chambali (Ainslie, l. c.).

— « noche » é o nome tamil nochie, ou nochchi.

Ruano não exagera, dizendo que estava pasmado de ouvir para quantas cousas aproveitava o negundo, pois o dr. Waring nota que poucas plantas têem na lndia usos medicinaes tão variados como as duas especies citadas de Vitex. D'estes usos, o principal é justamente aquelle em que Orta mais insiste, isto é, no tratamento de qualquer « cousa de dor », causada por rheumatismo, contusões ou distensões. Em qualquer d'estes casos, o negundo é considerado um resolutivo poderoso, ao qual recorrem desde logo os clinicos hindus, ou a medicina caseira. O dr. Fleming descreve o modo de applicação exactamente como Orta : as folhas frescas são aquecidas em uma vasilha de barro, e simplesmente collocadas sobre a parte affectada, mantidas por uma ligadura. Repetida esta applicação tres ou quatro vezes, póde dar — segundo o mesmo dr. Fleming — resultados extremamente favoraveis. Roxburgh menciona o habito de as mulheres indianas tomarem, depois do parto, banhos preparados com as folhas aromaticas do negundo — o que lembra o bom effeito sobre a « madre », apontado pelo nosso escriptor.

Um dos conhecidos commentadores de Garcia da Orta, o medico hollandez Bontius, fallando (1629) da curiosa doença, chamada beriberi, diz que em Java empregavam com resultado no seu tratamento fomentações e banhos da herba nobili Lagondi dicta [1]; e, segundo Waring e Dimock, era igualmente util este lagondi em outra enfermidade dos naturaes, obscuramente alliada com o beriberi, a que davam o nome de pés queimados (burning of the feet) ; este era talvez o motivo de lavarem por precaução os pés com o cozimento do lagondi ou negundo, como affirma o nosso escriptor. Como se vê, todas as informações dos

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  1. Lagondi é o nome Javanez do negundo, e segundo parece de ambas as especies de Vitex, da quaes Rumphius chamou respectivamente Lagondium vulgare e Lagondium littorale.


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Coloquios, relativas aos usos therapeuticos do negundo, são confirmadas pelos medicos que posteriormente têem habitado as regiões orientaes, desde Jacob de Bondt, ou Bontius, até aos clinicos inglezes do nosso seculo.

Orta distingue com rasão o negundo do agno-casto ; mas não tem igualmente rasão em dizer que eram muito differentes, pois o agno-casto pertence ao mesmo genero Vitex, o qual de mais a mais é muito natural.

(Cf. Dymock, Mat. med., 600 ; Pharmac. of India, 163 ; Roxburgh, Fl. Ind., III, 70 ; Jac. Bontii, Hist. nat. et med. Ind. orient. libri sex, a p. 18 da edição de Piso.)